– Há spoilers. Leiam as críticas dos demais episódios de Manto & Adaga, aqui.
Depois de uma sequência inicial com ênfase no drama e na exploração introspectiva de seus personagens, Manto & Adaga provou com os dois episódios mais recentes ser capaz de variar o tom e expandir seu alcance narrativo de forma suave e segura. Seguindo o modelo de Princeton Offense, Funhouse Mirrors inicia a segunda metade da temporada com uma narrativa mais acelerada e repleta de eventos que fazem andar o enredo. Por sorte, isso vem praticamente sem custos ao desenvolvimento de personagens, que continua sólido a ponto de sustentar uma das maiores qualidades da série, que é a capacidade de manter todas suas várias subtramas sempre frescas e interessantes.
O episódio ainda consegue ter sucesso onde o anterior deixou levemente a desejar, retomando a tradição dos capítulos iniciais em organizar a narrativa em torno de um tema. A escolha dessa vez não poderia ser mais acertada. Tornando explícito um traço que tem sido bem trabalhado no pano de fundo desde o início da série, a própria cidade de Nova Orleans se revela aqui como um “personagem” central para a trama. Figurando em cada uma das subtramas, a terra misteriosa e seu caráter limítrofe entre a criação e a destruição colocam mais uma vez a escolha pelo cenário a serviço de construir um mythos próprio para essa versão dos personagens, que mescla perfeitamente com o que há de essencial nos quadrinhos enquanto adiciona nos pontos certos. Somado a isso, temos uma dinâmica onde nosso protagonistas se vêem frente a frente com seus “caminhos que poderiam ter sido”, interações que reforçam o desenvolvimento dos personagens ao mesmo tempo em que encaminham o enredo em um bom passo.
Com Tandy (Olivia Holt), visitamos os conhecidos pântanos da região e, sob o ponto de vista científico de Mina Hess (Ally Maki), ficamos sabendo um pouco mais sobre as misteriosas operações da Roxxon que estão por trás tanto da origem dos superpoderes da dupla de protagonistas quanto do acidente que matou Nathan Bowen. A interação com Hess funciona bem, estabelecendo mais uma peça interessante no tabuleiro do enredo. A produção consegue introduzir as peculiaridades da filha de Ivan Hess, o cientista da corporação que vimos presente como vítima dentro da esperança lida por Tandy na mente do nosso suposto big bad Peter Scarborough (Wayne Pére), ao mesmo tempo em que cultiva ares de mistério a respeito do sucesso da empreitada. Em termos de narrativa, o avançar da subtrama se dá de maneira um tantinho rápida — e nem falo aqui dos poderes de supertrambicagem da moça, que já estão mais que bem estabelecidos pelo que foi mostrado.
Refiro-me ao contexto da infiltração de Tandy e à duvidosa verossimilhança das reações de Mina e do executivo da Roxxon, Stan (Preston Vanderslice), à tentativa de investigação da jovem. Para uma corporação que encomendou uma execução violenta e inescrupulosa como a vista em Call/Response, a presença de Bowen no contexto de pesquisas confidenciais certamente deveria levantar suspeitas rápidas e inquisidoras. No campo da relação pessoal com Hess, embora a coisa evolua de forma um tanto rápida, a boa escrita das cenas com as duas as suporta da melhor forma possível, sendo que as sequências servem ainda para nos mostrar um lado até então oculto de Tandy, contribuindo na representação de sua evolução pessoal. Merece destaque ainda a bela cena com Bowen lendo as esperanças de Ivan, que combina a cantarolagem arrepiante de sua mente estagnada com um visual bastante interessante (e que evoca, de propósito ou não, uma imagética reminescente de Lost, com o misterioso cofre em meio à vegetação e sobreposto com a sombra fumacenta)
Do lado de Tyrone, o enredo também avança bem com as investigações a respeito do antigo amigo de Billy, Duane (Dalon J. Holland), e sua relação com o polícial corrupto Connors (J. D. Evermore). A trama empolga por si só, com vários momentos de tensão bem estabelecida, além de servir como oportunidade para trabalhar a temática da sobrevivência e sua relação com a justiça, abordada nos diálogos entre Tyrone e Duane. A Nova Orleans do jovem envolvido com o tráfico é pintada em tons de cinza, ornando com sua filosofia que vê no caráter de resiliência do local uma confirmação da lei da sobrevivência do mais forte. Em paralelo, merece destaque a interação entre O’Reilly (Emma Lahana) e o policial facínora, dois sujeitos casca-grossa e experientes jogando seu pôker investigativo que acaba enredando a vida do jovem Duane. O desfecho trágico fecha de forma dramática a subtrama do caminho que poderia ter sido, jogando um novo significado sobre a confrontação de Tyrone ao ex-amigo, que prova um pouco do ponto de ambos e nos deixa curiosos a respeito de como o futuro Manto irá digerir e elaborar o ocorrido.
Funcionando como interlúdios de enquadramento, as cenas de Evita (Noëlle Renée Bercy) e Chantelle (Angela Davis) mostram que é possível se ter bons diálogos expositivos sem quebrar a dinâmica da narrativa, desde que haja o cuidado e fineza o suficiente de introduzi-los de forma orgânica. A frente mística continua a ser um dos pontos mais fortes da adaptação, indissociável da identidade dessa versão dos personagens. A forma como a série constrói seu lore próprio, interpretando o significado da cidade e seu ciclo de destruição/renovação e os temas subsequentes da sobrevivência e resiliência são bem amarrados, e vão estabelecendo mistérios sem cair na armadilha conhecida da “narrativa da caixa surpresa”, que tende a colocar muito peso na qualidade das revelações — fato que por si só tende a sabotá-las.
Funhouse Mirrors coloca Tandy e Tyrone frente a frente com espelhos que mostram aquilo que poderia ter sido, resultando em interações de personagem ricas em significados que, por sorte, não deixam a narrativa perder o pique. O ritmo com que a história vem sido contada, ainda que inconstante se prova bem acertado, mantendo as subtramas sempre frescas e em movimento, ainda que ao custo de causar estranhamento com o sumiço de alguns núcleos (Cadê os pais de Tyrone e de Tandy? E como vai a mãe de Tandy após a morte de Greg?). Conseguindo amarrar muitos temas e eventos sem pecar pelo excesso e conquistando uma identidade própria de forma orgânica, Manto & Adaga continua a se provar como uma sólida produção televisiva da Marvel.
Manto & Adaga (Cloak & Dagger) – 1X06: Funhouse Mirrors — EUA, 05 de julho de 2018
Criador: Joe Pokaski
Direção: Jennifer Phang
Roteiro: J. Holtham, Jenny Klein
Elenco: Olivia Holt, Aubrey Joseph, J. D. Evermore, Emma Lahana, Tim Kang, Ally Maki, Noëlle Renée Bercy, Lane Miller, Angela Davis, Dalon J. Holland, Preston Vanderslice, Tanner Ellis
Duração: 49 min.