- Há spoilers. Leiam, aqui, a crítica da temporada anterior.
Confesso, sem vergonha alguma, que não me aguentei quando, em meados da 3ª temporada, um pedaço da Arca de Noé entrou vigorosamente na história. Acho que nunca ri tanto de uma invencionice escalafobética desse tipo em séries que amontoam mistérios para desnecessariamente complicar a história. E isso, claro, não é um bom sinal, pelo menos não para mim, ainda que, do lado inadvertidamente cômico, essa situação tenha sido basicamente ouro puro ou, talvez melhor dizendo, safira lapidada.
Manifest nunca foi discreta com o uso de subtextos religiosos e nem precisava ser, mas a chegada do pedaço de madeira vindo do Vaticano foi, pelas piores razões, inesquecível, como se Jeff Rake tivesse decidido chutar o pau da barraca completamente e mergulhar de vez em uma abordagem que eu só posso classificar de banal sobre o assunto, especialmente quando os roteiros passam a paralelizar o cada vez mais obsessivo Ben Stone (Josh Dallas) ao próprio Noé na versão em que ele é essencialmente um vilão que chama o Dilúvio, salvando apenas sua própria família e os animais. E, com isso, o showrunner retirou o pouco de magia real que existia na série, preferindo assumir um tom quase galhofeiro.
Mas a Arca de Noé, infelizmente, não é o maior problema da temporada.
Há algo muito mais errado em Manifest do que o uso desses artifícios exagerados para criar seus mistérios. Para ilustrar o que quero dizer, usarei a brevíssima cena, já no final da temporada, em que Olive (Luna Blaise), vendo que seu pai quer cortar fora a tornozeleira eletrônica que o confina em casa para, claro, salvar Cal (Jack Messina), pesquisa por frações de segundo na internet sobre como fazer isso e, imediatamente, com a maior facilidade do mundo, retira o aparato, colocando nela mesma, o que permite seu pai e sua mãe Grace (Athena Karkanis) saírem desabalados para o quartel-general do Projeto Eureka, comandado por Robert Vance (Daryl Edwards). Esse tipo de situação apressada, conveniente e, francamente, idiota, está presente constantemente ao longo da série e ganha dimensões extras em seu terceiro ano, com roteiros cada vez menos preocupados em dar tempo ao tempo, levando os personagens a conclusões corridas sobre qualquer tipo de assunto, das interpretações sobre os Chamados até o ponto de convergência dos abalos sísmicos divinos causados pelos experimentos com o pedaço da Arca e com a cauda do avião.
Essa completa aleatoriedade e conveniência sobre basicamente tudo o que acontece na temporada é irritante e cansativa, além de ser muito mais tendente a corroborar a tendência de se fazer humor inadvertido do que um drama de mistério sobrenatural com o mínimo de coesão narrativa. Além disso, a temporada muito claramente sofre de deficiência de histórias relevantes o suficiente para preencher seus 13 episódios ao ponto de toda a primeira metade do ano ser dedicada, quase que exclusivamente, à ressurreição dos três “fantasmas” da temporada anterior, o psicopata Jace Baylor (James McMenamin), seu irmão de bom coração Pete (Devin Harjes) e o comparsa deles Kory Jephers (DazMann Still), que saem do lago agora descongelado como se nada tivesse acontecido.
Claro que o ressurgimento dos bandidos sacode a família Stone e leva a uma frenética rearrumação de tabuleiro que posiciona Grace e Cal escondidos na casa de Tarik (Warner Miller), mais conhecido como bucha de canhão para morrer e dar aquele “peso” à temporada, além de uma caçada aos vilões que, por sua vez, leva Pete a conectar-se com a angelical – mas não tanto – Angelina Meyer (Holly Taylor), personagem nova que é resgatada por Ben, Michaela (Melissa Roxburgh) e Zeke (Matt Long) na Costa Rica do cativeiro a que seus pais fanáticos religiosos a submeteram, em um estranho caso de amor platônico com fim trágico que, por seu turno, introduz o conceito de “barco salva-vidas” como Ben chama segundo o qual nenhum passageiro do voo 828 pode cometer pecados sem expiá-los, sob pena de isso levar todos à morte quando a Data de Morte chegar. Parece complicado, mas, na verdade, não é, e é essa “aparência” de complexidade que Rake vende como o grande mistério que precisa ser solucionado.
O que ele faz, na verdade, é um jogo para atrasar a resolução de tudo, já que todo esse emaranhado inicial da 3ª temporada, que começa com Ben e Vance, em Cuba, recuperando a cauda do avião achada por pescadores de lá, só serve mesmo para indicar que todos os passageiros morreram e foram ressuscitados por alguma força divina e para conectá-los ao redor do conceito do “barco salva-vidas” que expliquei acima. Quando a segunda metade da temporada começa, com os “fantasmas ressuscitados” mortos em definitivo (espera-se…), o que temos é o foco no Projeto Eureka em que todas as mentes brilhantes dos EUA, sobre o comando da NSA, por sua vez novamente sob controle de Vance, não consegue fazer absolutamente nada até que Saanvi Bahl (Parveen Kaur), mais conhecida como a médica de olhos constantemente esbugalhados, é recrutada para ajudá-los e, com sua sapiência sobre tudo, inclusive que o Monte Ararat é um vulcão adormecido, começa a montar o quebra-cabeças na base de deduções tiradas do jaleco.
A presença de Bahl na série – sofrendo por ter assassinado a Major na temporada anterior, o que exige toda uma trama paralela artificial que faz Jared (J. R. Ramirez) ajudar Sarah Fitz (Lauren Norvelle), filha da Major, a descobrir o que aconteceu com ela, com direito a relacionamento amoroso – é, talvez, o maior exemplo das conveniências narrativas sendo usadas para impulsionar a história. Suas deduções não-científicas que nem Sherlock Holmes seria capaz de chegar são ao mesmo tempo hilárias e irritantes, como quando ela decide jogar a madeira da Arca de Noé em uma fenda cheia de lava que aparece no interior de Nova York por imaginar – corretamente – que isso a fechará e outros exemplos parecidos. E isso sem contar com Olive e o pergaminho egípcio enviado por T.J. e analisado por ela (que nunca sequer havia visto um pergaminho antes na vida) e por um arqueólogo(?) que acabou de parar de usar fraldas como se pergaminhos de milhares de anos resistissem à manipulação patética dos dois que o escovam como se fosse um pano de chão.
E o que dizer do “poder de empatia” que Zeke ganha do nada, permitindo-lhe sentir o que outros sentem, mesmo pessoas dentro dos Chamados? E a onipresente safira que cobre o pedaço da Arca, a cauda do avião, a mão de Ben e, depois, as queimaduras de Cal? E o enlouquecimento completo de Angelina que decide que a bebezinha Stone é sua anja da guarda e a sequestra, mas não sem antes esfaquear Grace em tese mortalmente? E o aparecimento de Cal adolescente (Ty Doran) ao final para criar aquele cliffhanger maroto? Pelo menos a introdução de Eagan Tehrani (Ali Lopez-Sohaili) como um opositor ao messianismo de Ben Stone consegue ser interessante quando ele não é tratado como louco. É quase como se a temporada tivesse terminado como um recomeço para a história que, agora, terá os 20 episódios finais para ser solucionada com, espera-se, algum tipo de lógica.
De tudo o que a temporada fez de errado, o que mais me incomoda é a forma como a clássica oposição entre fé e ciência é abordada pelos roteiros, especialmente nos episódios finais. Meu ponto é que, de maneira não muito cuidadosa, a impressão que passa é que a ciência é para ser ignorada, deixando que a fé tome conta e justifique as decisões tomadas, algo que a antes incrédula – e levemente vilanesca – Aria Gupta (Mahira Kakkar), cientista-chefe do Projeto Eureka acaba fazendo ao ver a constelação de sua queria avó aparecendo nos desenhos mágicos de Cal. Considerando a mais completa incompetência dos cientistas como um todo na série – à exceção de Bahl, mas ela já fora contaminada pelos acontecimentos anteriores -, Rake parece pedir a seus espectadores para ignorarem os fatos e darem aquele salto de fé quando não houver uma resposta imediata e objetiva sobre determinado fenômeno. Definitivamente, uma péssima ideia a ser disseminada…
Achei que, na temporada anterior, Manifest havia alcançado o equilíbrio possível, mas, agora, noto com pesar que o showrunner resolveu aloprar de vez em seu empilhamento de mistérios sem solução que não seja simplesmente a aceitação irrestrita do que ele colocar nas telinhas (fé!). Não tenho muitas esperanças de que o quarto ano seja muito diferente disso, especialmente considerando que, agora, serão 20 episódios para Rake enrolar 10 e correr com os restantes… Resta saber se outros artefatos religiosos aparecerão. Um fragmento das tábuas dos 10 Mandamentos é um bom candidato, não?
Manifest – 3ª Temporada (EUA, de 1º de abril a 10 de junho de 2021)
Criação: Jeff Rake
Direção: Romeo Tirone, Michael Smith, Marisol Adler, Sherwin Shilati, Claudia Yarmy, Laura Belsey, Ramaa Mosley, Ruba Nadda, Dean White
Roteiro: Jeff Rake, Bobak Esfarjani, Laura Putney, Margaret Easley, Simran Baidwan, Ezra W. Nachman, Marta Gené Camps, MW Cartozian Wilson, Matthew Lau, Eric Haywood, Darika Fuhrmann
Elenco: Melissa Roxburgh, Josh Dallas, Athena Karkanis, J. R. Ramirez, Luna Blaise, Jack Messina, Ty Doran, Parveen Kaur, Matt Long, Holly Taylor, Daryl Edwards, Frank Deal, Tim Moriarty, Adriane Lenox, Ed Herbstman, Andrene Ward-Hammond, Brendan Burke, Ellen Tamaki, James McMenamin, Devin Harjes, DazMann Still, Lauren Norvelle, Warner Miller, Will Peltz, Mahira Kakkar, Ali Lopez-Sohaili
Duração: 559 min. (13 episódios)