Existe uma ousadia munida de uma originalidade única que emana de Manhãs de Setembro, aclamada série nacional estrelada por Liniker. Afinal, quando paramos para observar o ano inicial da produção, é inevitável o pensamento do quanto uma história assim não foi contada antes. Contudo, graças ao roteiro escrito pela criadora Josefina Trotta e por Alice Marcone, co-escritora, podemos adentrar ao mundo de Cassandra (Liniker), uma mulher trans que equilibra sua vida como motogirl e aspirante cantora, inspirada por sua ídola Vanusa. Mas nessa busca por independência, surge Leide (Karine Teles), ex-parceira de Cassandra antes de sua transição afirmando que possuem um filho, Gersinho (Gustavo Coelho), o que faz Cassandra paralisar tudo o que investia por sua autonomia para aprender a lidar com a maternidade.
O título que encabeça a série vem da icônica música homônima de Vanusa, o que é interessante traçar um paralelo em como a letra, que fala sobre o despertar, sair do casulo, oferece um contraponto a trajetória de Cassandra. O que a protagonista prometia a si mesma era de que nada ficaria no seu caminho por independência, todavia, nessas reviravoltas que a vida oferece, a mudança veio trazendo toda uma ressignificação para o que Cassandra estava determinada a cumprir ainda que fosse doloroso pelo sonho de ser cantora: a criação de novos laços.
Notamos como no primeiro episódio Cassandra está contemplando a realização de ter o seu próprio espaço ao conseguir fechar a compra de uma kitnet, está desfrutando de uma relação ao lado de Filézinho (Thomas Aquino), e dando duro no emprego desgastante como entregadora, e ao passo que ela põe a música título da série para tocar, é quando Leide bate em sua porta depois de 10 anos para apresentar o filho. É um simples detalhe que, porém, marca essa virada brusca — e o enquadramento da fotografia de Lito Mendes da Rocha foi essencial ao pôr no plano a entrada de Leide e Gersinho enquanto Cassandra desligava tocador de disco.
Essa novidade chega pedindo por responsabilidade, atenção, carinho e afeto, mas Cassandra é incapaz de cuidar até de uma planta, como diz, ao ganhar um cacto do namorado, em sinal de sua dificuldade em demonstrar sentimentos efetivos. E essa base é logo sentida no humor e modo de se expressar de Cassandra passados num tom contido, na defensiva, algo que vem de suas vivências como mulher trans lutando para se estabelecer diante de preconceitos. Vista por pessoas ao redor como uma mulher difícil, áspera, grossa, de pavio curto, o comportamento dela reflete a resistência de não querer ceder frente aos obstáculos depois de ter chegado tão longe por sua autonomia. Dessa maneira, o roteiro vai contrapondo como a informação sobre um filho vai atingindo a percepção e realidade de nossa protagonista. Podemos observar que, assim como a letra descreve “fui eu que num esforço se guardou indiferença”, esse é um lugar que Cassandra estava disposta a deixar de lado desde que chegou em São Paulo, pronta para investir na vida que queria, mas que agora passa ao ouvir um filho a chamando de “pai”, e de uma antiga paquera, o extinto nome de “Clóvis”.
Ao traçar essa sacudida da vida, Manhãs de Setembro conflitua um desafio a nossa protagonista: como dar afeto quando passou tanto tempo se reconstruindo num lugar fechado interiormente? Isso pode ser percebido até na relação aconchegante ao lado de Ivaldo ‘Filézinho’, quando ela não consegue corresponder tão bem os gestos dele, ou quando sente a relação ameaçada ao surgir regras diferentes do que já tinham definido, e são nesses eventos que Cassandra sempre recorre aos conselhos de sua ídola Vanusa, representando ali seu subconsciente. Versando ainda sobre demonstrações de afeto, há um ponto acolhedor que marca a temporada graças a participação de Linn da Quebrada como Pedrita, que ao lado de Roberta (Clodd Dias), protagonizam uma rede mútua sobre apoio, cumplicidade e amizade com Cassandra, o que reverbera também com Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos) casal e amigos de longa data, que fecham esse recorte protetor e familiar.
Se por um lado Cassandra não vê escapatória para experimentar a maternidade e dispor afeto de um lugar de dificuldade, a série abre o leque sobre o papel materno com a figura problemática de Leide. O background da personagem é um retrato recorrente do cenário sócio-econômico e político brasileiro ao vermos como uma comerciante ambulante lutando para sobreviver nas ruas ao lado do filho, o que ganha ainda peso com a performance sempre mergulhada em autenticidade de Karine, e a atuação densa de Gustavo na pele do jovem garoto, o que surpreende ainda mais para seu primeiro trabalho como ator num projeto de premissa original.
Embora a temporada inicial de Manhãs de Setembro seja cativante, e traga um desempenho magistral de Liniker, o texto deixa desejar ao não desenvolver tão bem os arcos de personagens secundários, a exemplo de Ivaldo, o que termina trazendo uma dramatização de última hora onde não tem espaço nem tempo para vermos isso sendo aproveitado de outra forma. Como desfecho, temos aqui uma série que parece encerrar muito antes de elevar seu potencial, e com uma narrativa que prende, encanta e não perde sua força emocional, reforçada com a fotografia certeira que enaltece a dramaticidade da história.
Manhãs de Setembro – 1ª Temporada (Brasil, 2021)
Criação: Josefina Trotta
Roteiro: Alice Marcone, Marcelo Montenegro, Carla Meirelles
Direção: Luis Pinheiro, Dainara Toffoli
Elenco: Liniker, Karine Teles, Gustavo Coelho, Thomas Aquino, Clodd Dias, Paulo Miklos, Gero Camilo, Linn da Quebrada
Duração: 35 (5 episódios, cada)