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Crítica | Mandala (1971)

A beleza impermanente das mandalas.

por Pedro Roma
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I

“(…) Lembro a cada instante que estou morrendo, e todos e tudo ao meu redor também, e desse modo trato todos os seres a todo momento de forma compassiva. Meu entendimento da morte e da impermanência tem sido tão forte e urgente para mim a ponto de que dedique cada segundo da existência à busca da iluminação? Se você pode responder ‘sim’ a ambas as perguntas, então você compreendeu de fato a impermanência”.

(Sogyal Rinpoche, em O Livro Tibetano do Viver e do Morrer)

Continuando com as críticas acerca da trilogia budista de Akio Jissoji analisaremos hoje a sua obra-prima, Mandala (1971) que saiu apenas um ano após seu primeiro longa-metragem This Transiente Life, mas que representou um grande salto para o diretor, não somente no que tange aos aspectos mais técnicos de sua produção como também nos temas por ele abordados, abrangendo um escopo maior de debate, novamente conflitando erotismo, violência, niilismo …. e budismo. 

Em Mandala somos apresentados ao quarteto de personagens que irão alternar o protagonismo ao longo do filme, sendo eles Shinichi (Kôji Shimizu); Hirochi (Tamura Ryo); Yukiko (Akiko Mori) e Yasuko (Sakurai Hiroko). Apesar de todos eles serem estudantes universitários estabelecidos em Kyoto, a obra se inicia em uma pousada próxima a uma região praiana. Nesse primeiro momento da trama, Shinichi será o ponto focal da história, onde, após terminar um momento íntimo com sua namorada, Yukiko, ele recebe Yasuko, a namorada de seu amigo, para transarem, enquanto sua namorada passa para o quarto de Hirochi. Nesse momento, ele dialoga com não consegue mais se encaixar no presente, preferindo a morte como forma de escapar do Tempo. Já nessa primeira sequência temos um cenário deslumbrante, com arquitetura referenciada do expressionismo alemão e que representa a tormenta pessoal pelo qual passam nossos protagonistas, com planos que isolam os personagens em relação aos amplos espaços, fora o uso de cortes rápidos realizados de forma a romper a percepção cronológica do espectador, técnicas a serem revisitadas no restante da obra como um todo. Tendo em vista essa premissa, o filme se desenvolverá a partir da discussão de assuntos políticos e religiosos, assim continuando a refletir sobre as premissas inauguradas na obra anterior do diretor, revendo vários aspectos da sociedade japonesa ainda fragmentada por conta das grandes guerras do século XX, das bombas atômicas e pelo surgimento de novas formas de pensar e ver o mundo e o trabalho advindas do contato direto com o liberalismo proveniente da época em que os EUA dominaram as instituições do País. 

Terminada a sessão de hedonismo, permanecem na pousada apenas Shinichi e Yukiko. Durante um passeio na praia, ambos são atacados por dois homens misteriosos e a moça é abusada sexualmente. É bom ressaltar que Mandala não apresenta nada de erótico, pois, com exceção de sua cena de abertura, o sexo aqui presente é sempre um instrumento, não de prazer ou mesmo de poder sobre outrem, mas, de maneira distorcida e perversa, uma ferramenta para a transcendência ética e moral dos personagens, o que claramente não passa de embuste e mentira. Após o ocorrido, contudo, Shinichi ao encontrar sua namorada desacordada em vez de ajudá-la, transa com ela, quem secretamente estava consciente e que admite, posteriormente, ter se engajado no ato, pois assim pareceria que ela de fato estaria morta, um íntimo desejo seu.

Após esse ocorrido o dono do local, Maki (Kishida Shin), se apresenta como mandante daquele ato e convida ambos para adentrarem o culto o qual ele preside, explicando que o que ele busca é o retorno do homem a seu estado natural, onde o sexo não era tabu ou mesmo forma de amor, e que era praticado de maneira livre, para dessa forma vencer a própria natureza do Tempo e da Morte. Nesse momento serão apresentados vários simbolismos e mandalas com os Budas Furiosos, em uma perversão do papel dos defensores do Darma do Buda. Diferente do Tantra búdico, onde o masculino e feminino se unem para alcançar a iluminação através da compaixão, na seita de Maki não há saída para o homem se não negar o amor totalmente, como o diálogo a seguir ilustra bem:

“Então havia uma palavra mais apropriada que “amor”?
“Benevolência”.
“Crie a harmonia com benevolência.”
“Benevolência” é a palavra.
O “Amor” é acompanhado pelo egoísmo.
A “Benevolência” é isenta dele.
Embora o amor tenda a destruir uma comunidade, a benevolência não o faz.
Ela é o princípio que pode criar indivíduos para formar-se uma comunidade”.

II

A partir de uma relação direta com o sagrado proporcionado por sua esposa, uma médium que inicia todos os membros do culto fazendo sexo com eles e com os próprios deuses, Maki sonha em construir uma comunidade baseada em agricultura, reverência a natureza e renúncia a convivência social comum, o que de fato ele alcança. O roteiro de Toshiro Ishido é muito inteligente nesse ponto em abordar de forma quase lúdica e onírica, junto a hábil direção de Jissoji, temáticas tão pesadas, nos proporcionando valor de choque, é claro, mas também simbolizando os conflitos políticos e comportamentais inerentes ao Japão da época que vivia entre as estruturas tradicionais de pensamento e comportamento com as novidades trazidas pela forçosa abertura do País ao Ocidente. Em um mundo agora pautado pela lógica materialista de consumo, do trabalho e do capitalismo, a espiritualidade se tornou mais do que uma saída, mas um refúgio, cenário esse que fez com que os jovens desiludidos com o seu mundo e sua vida se tornassem alvos fáceis e certeiros para seitas religiosas perigosas e persuasivas. Exemplos disso nos EUA não faltaram, vide a família Manson, composta por uma juventude de rejeitados e perdidos, como os personagens de Mandala também o são, buscando um caminho, buscando o Dharma pessoal. 

‘’Uma Mandala é uma representação simbólica do Universos e é desenhada em um altar de areia ou pergaminho. Mandala é uma palavra em sânscrito e seu significado original é um objeto que tem uma essência de verdade. […] Os ensinamentos Budistas são escritos em Sutras, mas palavras sozinhas não podem descrever completamente a essência da verdade. Mandala é uma forma visual de Dharma e é utiliza em rituais, meditações e cerimônias.’’

Site: Budismo Japonês

Nesse ponto da trama, passamos a acompanhar o segundo protagonista da obra, Hirochi, primeiramente no âmbito da cidade de Kyoto e depois em busca de Shinichi. Nessas sequências percebemos o quanto ele é igualmente misógino e individualista quanto o amigo desaparecido, vide o momento em que ele obriga sua namorada, Yasuko, a realizar um aborto clandestino que leva a moça a ficar estéril, ou quando ele passa a ser perseguido por um grupo de jovens militantes de um grupo de esquerda o qual ele fazia parte enquanto estudante universitário, a quem ele traiu. Esse segmento nos lembra de todo momento caótico político – institucional do Japão da época e a forma como a rebeldia juvenil se expressava contraditoriamente.

Posteriormente, tanto ele como Yasuko vão atrás do casal de amigos desaparecidos na pousada onde foram dias antes e mais uma cena de estupro nos é mostrada, contudo, o jovem casal está longe de ser passivo como o anterior e resistem bem mais, mesmo que inutilmente. Levados para o templo onde Maki conduz seu séquito, Hirochi confronta Shinichi, já entregue completamente ao grupo, fotografado em película preto e branco que entrega a forma extremista e desencantada da visão de mundo de todos daquela perversa seita. Apesar de persuadir o amigo para a sandice que está realizando, não resta muito ao protagonista se não se ver obrigado a ver sua ‘’amada’’ ser cruelmente estuprada pelos dois guarda-costas de Maki, na cena que certamente é a mais pesada da obra como um todo, até ser retirado do local a força. Yasuko, contudo, não suporta a dor daquela situação e ali mesmo comete suicídio, se enforcando em uma árvore com a corrente usada para prendê-la durante o estupro. Se faz muito interessante como o diretor utiliza-se de uma direção de atores e montagem tendendo para o exagero para tornar mais claro ao espectador que mais do que um ato brutal exposto de forma naturalista em película, o objetivo é exatamente o de nos fazer repensar como as várias instituições políticas e religiosas instrumentalizam e brutalizam o corpo feminino, algo bastante gritante em uma nação que sofreu e sofre tanto com o machismo patriarcal, presente tanto na religião como nos próprios movimentos ditos como progressistas.

Após se recuperar e se dar conta do desaparecimento da namorada, nosso protagonista voltará ao corrompido santuário para inquerir aos membros do culto o destino de Yasuko. Aqui veremos a mais bela sequência da obra pois a cena se passa toda a noite em uma comemoração junto aos deuses, lembrando muito a dança cerimonial xintoísta Kagura, com uso de máscaras cerimoniais, contudo, mais próximo de um ritual xamânico. Temos mais uma vez um excelente uso de preto e branco contraposto ao uso de cores, que destaca, junto ao elemento simbólico da fogueira, como tanto Hirochi, com sua visão racionalista de mundo, como Shinichi carregam o mesmo ódio pela própria vida, oculto nas máscaras sociais que ambos usam agora. 

Não obtendo respostas, Hirochi vai ter com a médium da seita que, mediante violência, admite que Yasuko se matou e foi enterrada ali. Ele, em um ato de fúria, a estupra, apesar de toda a resistência da mulher que, após tentar uma desesperada fuga e se ver encurralada pelo protagonista, se joga de uma grande altura, terminando com sua vida. Hirochi fará um enterro ‘’digno’’ a ambas e decide, assim, atear fogo em parte do templo. Com o grupo de Maki voltando a si mesmos após a noite anterior, encontram os indícios da profanação daquela que recebia os deuses, e decidem partir para um novo solo sagrado em uma ilha distante. Os últimos minutos da obra basicamente mostram a peregrinação da seita em direção a seu novo lar, junto da tentativa de Hirochi de os alcançar para poder concretizar sua vingança. O grupo consegue chegar aos barcos preparados para sua viagem até as propriedades de Maki em uma ilha distante, porém uma terrível tempestade noturna os assola e no outro dia todos estão mortos na praia e são encontrados por nosso protagonista. Apenas o líder do grupo tem uma expressão de terror em sua face, desmentindo, assim, seu desapego à morte.

III

Mandala, assim, é um grande filme, não somente por seus aspectos técnicos bem realizados e pela inventividade artística do diretor e do roteirista em juntar temáticas aparentemente tão díspares quanto budismo, violência e erotismo, mas antes por compor uma obra tão ácida, corrosiva e política, buscando no grotesco um sentido, mesmo que incerto, para problemas completamente institucionais, como as contradições de movimentos sociais falsamente socialistas e trabalhistas, por exemplo, enquanto espelha o preocupante aumento de grupos religiosos questionáveis moral e eticamente, abordando, também, questões puramente existências humanas como a busca e a perda do sentido da existência pelo sujeito frente a certeza da morte e fugacidade do tempo. Talvez a impermanência de todas as coisas leve muitos a rejeitarem um sentido maior para a vida, ou simplesmente faça com que se aproveitem disso para satisfazerem hedonisticamente o próprio prazer enquanto esperam o barco afundar.

Na cultura budista tibetana, que é uma das vertentes que melhor explora este simbolismo, o padrão de mandala não apenas exalta o universo, mas também a essência da vida de impermanência e reencarnação representada pelo círculo externo que envolve a natureza de Buda e os ensinamentos de iluminação do Buda pelas formas coloridas com areia. Trata-se de um exercício para liberar o apego, ego e ignorância, para representar a jornada rumo ao despertar.

Site: Budismo Hoje

Mandala (Mandara / (曼陀羅) – Japão, 1971
Direção: Akio Jissoji
Roteiro: Toshiro Ishido
Elenco: Kôji Shimizu, Tamura Ryo, Akiko Mori, Sakurai Hiroko, Kishida Shin
Duração: 136 minutos

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