Um dos maiores méritos de Malcolm e Marie é sustentar uma premissa tão básica em uma longa duração sem parecer que está inventando conteúdo. E isso não é uma tarefa fácil, principalmente diante de algumas escolhas estruturais adotadas pelo diretor Sam Levinson – criador da série Euphoria – dentro do recorte temporal escolhido, que foca única e exclusivamente nos seus personagens-título em uma conversa passada numa mesma noite. Não há flashbacks, saltos temporais, nem mesmo cenas com outros personagens não envolvendo o casal, interpretado por John David Washington e Zendaya. O filme é todo e unicamente dedicado a uma grande discussão entre os dois, que vai revelando lentamente quem são, quais seus demônios pessoais e como eles afetam a dinâmica e as condições do relacionamento.
Acho sempre muito interessante quando filmes apostam o desenvolvimento de personagens através da ação, e mais ainda quando romances se desenvolvem apostando nas divergências do casal, em vez de sua química amorosa. Pode parecer um tanto difusa essa escolha, uma vez que assistir à troca de farpas que expõe os defeitos de ambos os lados pode gerar um efeito antipático aos personagens em quem assiste, fazendo-o não torcer pelo casal ou claramente escolher um lado como álibi da razão no lado tóxico da relação. No entanto, vender relacionamentos pelo lado conflituoso às vezes pode ser o caminho mais estimulante para entender o que fez aquelas pessoas se amarem e passarem a conviver uma vida mesmo sendo tão distintas. O conflito é um modo de gerar comunicação, que basicamente é o sustentáculo de qualquer relação, tanto que Malcolm e Marie partem para o embate porque têm exatamente um problema de falta de diálogo, que é o mote para torcermos para que eles finalmente possam se entender.
E justamente numa noite importante, que deveria ser de grande celebração, é que surgem os gatilhos para que cada um liberte o enorme engasgo de ressentimento que vinha carregando, de acúmulo a pequenas preposições aparentemente irrelevantes, mas que diante de suas memórias, criavam um monstro que poderia ser solto a qualquer momento. Nesse caso, o texto é hábil e inteligente para não soltar todos os cachorros de uma vez na história, dividindo as explosões emocionais em blocos evidentemente separados, protagonizados pelo ponto de vista de um dos dois que soltaria o verbo com mais força em cima do outro, até que o outro absorvesse o impacto e preparasse um contra-argumento com uma nova informação relevante sobre o histórico do relacionamento, o que daria prosseguimento à sequência de desabafo. Parece até um filme de tribunal sem juiz, no qual o público é o jurado, e promotoria e defesa se invertem nas figuras de Malcolm e Marie constantemente, a depender do período da conversa e da forma como argumentam seus pontos.
Até por isso a lente de Levinson nunca parece meramente observadora, há sempre um olhar crítico bastante afiado e presente na forma como coloca seus personagens na câmera, utilizando os próprios enquadramentos para comunicar de que lado está em cada momento da conversa. É um filme bem explícito, sem vergonha de abraçar o expositivo porque funciona dentro da estrutura de desabafos exponenciais, jogar informações na cara dura para dar progresso ao debate. Mesmo que a teatralidade natural de um filme em que o texto fale mais forte não engula totalmente a sensação de estar protelando a resolução do conflito constantemente, cada novo bloco é tão interessante, tão bem encenado e principalmente atuado pela dupla principal que seria delicioso de acompanhar a troca de diálogos até por mais minutos. O único problema seria encarar mais desvios metalinguísticos, aparentemente pessoais do diretor, sobre seu posicionamento a algumas vertentes do cinema.
Ainda que seja estabelecido na premissa que Malcolm é um cineasta e Marie uma atriz e que é algo relacionado ao trabalho o que dá início à discussão – além de ser ponte metafórica ao ápice do debate envolvendo a transformação do sofrimento do próximo em matéria-prima artística –, há uma série de digressões narrativas pausando os blocos de confronto para tecer comentários gratuitos sobre a forma como a crítica cinematográfica e o público em geral buscam significar aquilo a que está assistindo. Existem pontos interessantíssimos levantados nesses diálogos, como a impressão distorcida de que sempre diretores negros buscam o social e o político, sendo que eles podem muito bem ter pensado a história apenas para viés escapista ou mesmo artístico sob outras ópticas – que até funciona como desarme do público como jurado a procurar intenções de mensagens sociais do diretor no decorrer da briga –, mas eles não soam nada naturalmente inseridos na trama porque são enfiados da mesma forma que uma nova camada de conflito no relacionamento, sendo que não há necessariamente uma ligação.
Como há literalmente uma pausa no filme para isso, parece que Levinson está utilizando Malcolm para também desabafar em sua posição de criador, que possui falas deveras questionáveis ou no mínimo radicais, ainda que se tenha uma autoconsciência do roteiro por colocar os dois personagens como falhos. Ainda assim, é um tanto estranho pensar nesse desabafo como mecanismo de autodefesa não só ao filme, mas ao seu estilo de autoria, o que faz Malcolm e Marie flertar com o rótulo de “pretensioso” – principalmente considerando que o preto e branco não tem uma função narrativa tão evidente, se não a austeridade visual. Se a energia contagiante do filho de Denzel Washington não vendesse tão bem a barca e transitasse de forma orgânica com a estupenda atuação de Zendaya do outro lado, novamente ao ponto de maior interesse, isso poderia gerar bastante antipatia pelo filme. O que felizmente não foi o meu caso e nem chegou perto de anular o belíssimo estudo de relacionamentos complexos que o filme entrega em seus melhores momentos.
Malcolm e Marie (Malcolm & Marie | EUA, 2021)
Direção: Sam Levinson
Roteiro: Sam Levinson
Elenco: John David Washington, Zendaya
Duração: 106 minutos