Este curta do cineasta brasileiro João Vieira Torres começa, por um movimento de sobreposição, como um sonho de Iemanjá, unindo imagens de dança com a fúria do mar e suas ondas. Então, se desenvolve a narração de um pesadelo recorrente do diretor, que ganha forma imagética através do Cinema, em que se vê, ao fundo de uma forte tempestade no mar, um navio negreiro afundando com escravos. Séculos depois da escravidão, os fantasmas do passado ainda permanecem e invadem os sonhos.
Depois, o terreno onírico dá espaço para imagens reais, filmadas por uma câmera na mão. Há, de imediato, um choque pelo contraste entre o que se vê a seguir, que de ponto em comum só possui o objeto do navio. Toda a sequência anterior que representava um medo capaz de só ser sentido por uma pessoa negra agora dá espaço para uma sequência de pessoas brancas, no presente, observando, com fascínio, um navio negreiro, tirando fotos e se amontoando para vê-lo. Então, o que é trauma para uns, é souvenir ou passeio turístico para os outros.
Em seguida, João Vieira Torres segue com sua câmera na mão, quase como uma entidade própria fantasmagórica e entra em um museu, durante a Biennale, em que está uma exposição de artistas negros. Seu olhar vagueia por estes espaços, em um movimento que até lembra o movimento de Brian De Palma no museu em Vestida Para Matar, em busca de algo, perdido pelos corredores. Ele parece não pertencer ali, pois cada pessoa que cruza com a câmera volta seu olhar para o que está atrás da tela, indicando uma presença não desejada.
O fantasma por trás das câmeras grita: “quantas pessoas negras você vê aqui?”, e assim repete, pois não há nenhuma naquele local, inteiramente composto de espectadores brancos. O próprio diretor e protagonista, homem negro, jamais aparece, com sua não-presença sendo uma forte presença a ser evocada por um fora de campo. Enquanto isso, de negritude, em tela, só se vê seus objetos históricos e suas expressões artísticas.
Afinal, para quem essa arte é feita? Mais uma vez, o aprisionamento veio de outra forma, até no pós-vida — “I see dead people”, momento em que João usa a frase de O Sexto Sentido, para evocar o estado de ser um homem morto vagando naquele lugar. Trata-se de um confronto com quem está naquele local, mas que perpassa também o espectador geral de arte. Mal di Mare é um manifesto político cinematográfico no sentido de que sua câmera existe como objeto que interage com o mundo, em que sua própria presença existe para gerar um mal estar em um lugar, em que o ato de filmar quer provocar fagulhas. Logo, o que faz seu diretor, João Vieira Torres, é realizar uma espécie de contra-ataque em que expurga seus sonhos: se os homens brancos são fantasmas em seus pesadelos, agora ele é um fantasma que atormenta seu espaço real e o status quo da arte.
Mal di Mare (2022) — Brasil, França
Direção: João Vieira Torres
Roteiro: –
Elenco: –
Duração: 15 mins