Tem sido curioso acompanhar o trabalho expansivo de Sharon Horgan em trazer narrativas femininas como foco no universo televisivo. Além de atriz, diretora e produtora, Horgan empresta seu talento sendo roteirista, e se este ano tivemos a satírica Shining Vale, onde utilizou o prisma do terror para debater a retratação recorrente da mulher como mentalmente instável, Horgan então conduz em Mal de Família (Bad Sisters) uma irônica dramaturgia que irrompe os valores da moralidade ao colocar uma trama de assassinato como um objetivo a ser torcido.
Adaptando a série belga Clan, Bad Sisters é mais um exemplo de como Horgan consegue pavimentar discussões pertinentes em suas criações através de uma estrutura familiar. Neste caso, a narrativa aqui se apresenta com um típico whodunnit e faz desse recurso a principal ligação entre o roteiro e o público. Contudo, a inevitável interrogação sobre “quem matou” é colocada de lado ao termos o “quando morre” como o mistério chave. Alternando entre duas linhas temporais, passado e presente, Horgan sabe de maneira hábil como fisgar a audiência para acompanhar os desdobramentos da trama que quer ser mais que um jogo de mistério.
Dentre as muitas narrativas inspiradas em E Não Sobrou Nenhum de Agatha Christie, Mal de Família é uma das mais criativas ao propor uma dinâmica inversa a um mote constantemente reutilizado. Assim, nessa premissa em que seguimos um grupo de irmãs harmoniosas e superprotetoras umas com as outras e que elaboram formas para matar o marido desprezível de uma delas, a mecânica de “um por um” assume um novo rumo por meio de cada plano que executam e que terminam fracassando. O cativante crédito de abertura sintetiza muito bem essa configuração no dispositivo de armadilha que inicia passando pelos retratos das irmãs até acender os fósforos que queima o quadro de John Paul (Claes Bang), o alvo. Além disso, a sequência com as armações é acompanhada com um cover da música Who by Fire de Leonard Cohen, e a letra abre um questionamento para a forma que JP será morto: “And who by fire, who by water. Who in the sunshine, who in the night time“. Seria queimado? Afogado? Ao amanhecer, ou à meia-noite?
A audiência é atraída rapidamente para essa movimentação graças ao roteiro ágil e assertiva montagem que não poupa informações para incitar o mistério: JP morreu, e no seu velório as ex cunhadas Eve (Horgan), a matriarca das irmãs, a caçula Becka (Eve Hewson), Bibi (Sarah Greene), Ursula (Eva Birthistle) têm algo a esconder, principalmente de Grace (Anne-Marie Duff), a viúva E o que levaram elas a cometerem o crime se torna plausível ao voltarmos seis meses em cenas de flashbacks que demonstram quem era JP: controlador, racista, homofóbico, opressor, tóxico, abusivo, misógino — traste que em toda família tem. Uma pessoa extremamente desprezível, que emanava egoísmo e fazia do sadismo uma diversão, além das práticas constantes de gaslight contra a esposa. Ao passo que conhecemos as tentativas frustradas das irmãs para tirarem JP de cena, se torna um artifício provocante desejar ver quanto antes o momento que um dos vários planos deu certo.
Em linhas de comparação, Bad Sisters flerta com semelhanças entre Why Women Kill, Big Little Lies e Dead to Kill ao compartilhar de um universo único, abrangente e empolgante com personagens femininas no centro, com a exceção de contar com um humor ácido desconcertante e argiloso. Contudo, por mais que a série conte com um elenco afiado e que entrega uma performance sempre carregada de autenticidade, há uma parcela de subtramas que comprometem o andamento de sua premissa. A exemplo do adultério de Ursula, ou o melodramático envolvimento amoroso de Becka terminam inflando a agilidade inicial do texto com momentos que parecem estender a narrativa para um caminho já esperado.
O que poderia ser trabalhado numa quantidade menor de episódios, oscila entre escolhas e subtópicos repetidos e que terminam não funcionando como imaginado. O que entra como ilustração é a busca dos agentes de seguros em encontrar uma brecha que impeça Grace de receber a apólice de seguro. A ironia pretendida no humor é na fraca ameaça que representam as irmãs Garvey serem descobertas, e nesse exercício melodramático, como perseguem um objetivo egoísta e descabido em arruinar o direito de uma viúva. É um arranjo em paralelo ao plot principal que perde pontos pela obviedade e insuficiência em tornar o suspense cômico, uma que o que mais importa é a mórbida empatia (?) em ver o fim de JP.
No geral, há muita trivialidade em jogo, que se torna um dos menores problemas graças a forma que as discussões são tratadas no roteiro. Um exemplo disso é a cena final que exalta a sensação de liberdade de Grace em voltar a ser ela mesma sem a presença de um homem que a invalidava, aliás, essa é uma das mensagens pontuais de Bad Sisters ao destacar personagens femininas: a celebração e o direito de independência. O que tivemos de JP, além do nível ínfimo de caráter, senão a representação de um homem cruel e implacável que sufocava e tornava a amizade e a convivência entre mulheres fragilizadas? É um retrato frequente de comportamentos abusivos, que apesar da fantasia e humor com o que a trama explora resoluções, vale pela personalidade que representa personagens sobreviventes.
Mal de Família (Bad Sisters – Irlanda, Belga, Reino Unido, EUA, 2022)
Criação: Sharon Horgan, Brett Baer, Dave Finkel
Direção: Rebecca Gatward, Josephine Bornebusch, Dearbhla Walsh
Roteiro: Ailbhe Keogan, Perrie Balthzar, Dave Finkel, Daniel Cullen, Karen Cogan, Brett Baer, Karen Cogan
Elenco: Sharon Horgan, Anne-Marie Duff, Claes Bang, Eve Hewson, Sarah Greene, Eva Birthstle, Brian Gleeson, Daryl McCormack, Michael Smiley
Duração: 58 a 49 min (10 episódios, cada)