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Crítica | Making It So: Memórias, de Patrick Stewart

Uma jornada estelar.

por Ritter Fan
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Apesar do título fazer referência ao seu icônico personagem Jean-Luc Picard, capitão da USS Enterprise de Star Trek: A Nova Geração, Patrick Stewart não faz de sua autobiografia Making It So uma obra focada na série que trouxe a franquia de ficção científica de volta à televisão em 1987. Ele reconhece que esse foi o papel que o levou ao estrelato mundial, não tenham dúvida, e ele fala bastante de seus sete anos na cadeira de capitão, mas o octogenário ator britânico teve e tem uma carreira que vai bem além desse papel e seu livro deixa isso muito claro. Além disso, há incontáveis livros sobre Star Trek e sobre vários atores das séries, muitos deles definidos unicamente por seus respectivos papeis na criação de Gene Roddenberry, pelo que é ótimo que Stewart faça um apanhado amplo de toda sua vida, sem focar em seus anos na cadeira de capitão.

Seguindo uma estrutura cronológica, mas não cartesianamente cronológica, o que lhe permite, por vezes, abordar assuntos relevantes que acontecem “em seu futuro” quando ainda está falando de seu passado, Stewart consegue imprimir uma gostosa dinâmica de “conversa” ao seu muito bem escrito e muito bem editado texto que começa com ele ainda um menino de nove anos em Mirfield, pequena cidade no condado de Yorkshire, Reino Unido, pelo final da década de 40, e acompanha cada grande momento de sua vida dentro e fora dos palcos e sets de filmagem até quase que literalmente o dia anterior ao encerramento da autobiografia. É perfeitamente possível imaginar Stewart, em sua mais do que característica voz, contando sua história para o leitor, algo que eu tive a sorte de não precisar imaginar muito, pois tive a oportunidade de fazer uma leitura simultânea à audição do audiolivro que ele gravou, lendo um ou dois capítulos e, ato contínuo, escutando-os (como fiz com as autobiografias de Mel Brooks e de Brian Cox).

Patrick Stewart, porém, não oferece aos leitores uma autobiografia ousada, do tipo “não tenho mais nada a perder, portanto vou contar tudo” como é o caso da que David Milch escreveu e publicou antes que o Alzheimer o impedisse, mas também não é uma obra vazia e autocongratulatória. Diria que a melhor definição do que ele escreveu é uma autobiografia honesta naquilo que revela e que não revela e, acima de tudo, educada, generosa, agradecida e viciante, difícil de parar de ler. Quando falo que o que o livro não revela mostra honestidade, falo principalmente da vida privada de Stewart, que ele mantém muito próxima do peito, falando proporcionalmente muito pouco de suas duas primeiras esposas e de seus dois filhos e quase nunca de maneira amorosa. E eu não leio nisso uma frieza do ator, mas sim justamente uma escolha consciente em preservar sua intimidade, o pouco que um artista conhecido como ele é pode ter. Por outro lado, ele não deixa de abordar seus adultérios e seus divórcios, assim como o afastamento de sua filha e sua aproximação de seu filho somente com ele já adulto.

O que eu sinceramente não gostei foram suas tentativas de criar um passado difícil, pobre, que ele teve que lutar para se desvencilhar. Não que ele minta, pois realmente não acho que ele faz isso, mas ele “embeleza” sua origem humilde para torná-la mais humilde do que ela provavelmente foi e, mais do que isso, trata de falar que seu pai batia em sua mãe, algo horrível, sem dúvida, mas que ele não aprofunda o suficiente para realmente deixar claro que isso o traumatizou. Não que possa haver justificativa para um marido bater em sua esposa, mas o que Stewart escreve diminui o fato e, com isso, retira sua importância. Pode ser que ele tenha feito isso também para preservar sua privacidade, mas, aqui, sua discrição não funciona como funciona com suas próprias esposas e filhos. Teria sido melhor se Stewart sequer tentasse falar das penúrias de sua vida quando jovem, pois por vezes parece que ele está reclamando de barriga cheia.

Por outro lado, é muito bacana notar como ele esmiúça seus primeiros 22 anos de vida, dedicando algo como um terço de seu livro a esse período formativo de sua vida em que ele, tentando ser pragmático, enveredou pelo jornalismo, contando anedotas hilárias sobre quando ele usou a palavra “íntima” no contexto de “atmosfera íntima de um pequeno teatro” e seu editor deu um ataque com ele por escrever pornografia, e sua educação misturada com o teatro amador de sua cidade e os diversos professores que teve nessa área, uma delas levando-o inclusive à sua primeira de três “experiências paranormais” que ele teria (e que ele conta em detalhes até arrepiantes), chegando a ser ator itinerante no Old Vic World Tour, fazendo pequenos papeis em montagens teatrais pelo mundo estreladas por ninguém menos do que Vivien Leigh já no final de sua ilustre, mas complicada carreira.

Stewart avança em sua vida focando em seu trabalho no teatro até finalmente entrar na cobiçada Royal Shakespeare Company, ganhando papeis de mais destaque, até ser reconhecido o suficiente para ainda discretamente começar a aparecer em papeis no audiovisual. Mas foi justamente em razão de Shakespeare, quando ele foi professor convidado na UCLA, é que ele foi “achado” pela produção de A Nova Geração e conseguiu seu papel apesar de Roddenberry tê-lo detestado de cara e nunca, em momento algum, realmente ter aceitado Stewart como Picard, algo que só ocorreu pela insistência dos produtores, provando que nem sempre os criadores das obras sabem o que é o melhor para elas. É muito provável que não haja muita coisa sobre Star Trek que ele relate e Trekkers não saibam, mas, como mencionei logo no começo, não é e nem deveria mesmo ser o objetivo de Stewart listar anedotas de seus anos como Picard, sendo muito mais fascinante ele paralelizar esse seu importante momento de vida para abordar o desfazimento de seu primeiro casamento causado por diversos fatores, inclusive a distância forçada pela produção nos EUA e a permanência de sua esposa na Inglaterra.

É essa capacidade de Stewart de conectar o lado mais popular de sua vida com abordagens pessoais – ainda que não exatamente íntimas – que faz de Making It So uma leitura tão cativante. Vemos um ator de profundas raízes clássicas no teatro caminhar quase que completamente sem querer para se tornar um dos mais icônicos atores na cultura pop com os inesquecíveis Picard e Professor X em sua carteira de personagens. E o fato de ele reconhecer as mudanças causadas em sua vida por sua transformação em uma celebridade mundial, mas sem ele perder a admiração e sua vontade de continuar trabalhando nos palcos, é particularmente alvissareiro, mostrando que nem sempre a fama e o dinheiro são os fatores principais das escolhas de um artista.

Making It So é Patrick Stewart sendo o mais fraco e aberto que ele acha que pode ser sem dragar para os holofotes – muitas vezes indesejáveis – pessoas de seu trato pessoal que ele não precisaria mesmo expor para contar a história de sua vida. São oito décadas contadas em mínimos detalhes em uma fascinante jornada que poucos têm o privilégio de trilhar. E que ele continue nesse caminho por ainda mais tempo!

Making It So: Memórias (Making It So: A Memoir – EUA – 2023)
Autor: Patrick Stewart
Editora: Gallery Books (Simon & Schuster)
Data de publicação: 03 de outubro de 2023
Páginas: 480

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