Nesta terceira edição da série Mágico Vento, temos uma espécie de abordagem em continuidade sobre o passado de Ned Ellis, pescando informações que nos foram apresentadas em Forte Ghost. É um momento inquietante na vida do protagonista. Ele vê seu amigo sair da tribo e voltar para Chicago, onde pretende seguir com a vida de jornalista, beber um pouco de uísque e gozar das benesses da civilização. A ironia do roteiro de Gianfranco Manfredi está justamente nessa definição do que é (e do que não é) civilizado. A cena de abertura do quadrinho é o plantio da semente dessa discussão. Poe, Mágico Vento e Cavalo Manco assistem a um certo ritual indígena, diante do qual Poe fica bastante horrorizado, chamando o espetáculo de “selvagem”. Este é um dos motivos pelos quais ele pretende voltar para a cidade, por sinal, já que não consegue se ver no meio daquele povo com costumes tão difíceis de compreender.
O enredo é construído sob essa percepção, e contrapõe a ela um cenário urbano, aparentemente civilizado e supostamente cheio de todas as coisas maravilhosas criadas pelos homens. Mas de cara notamos que é um lugar praticamente inabitável. Há muita miséria e insalubridade como regra, assassinatos, engano das massas através de uma falsa caridade (utilizada para encobrir um esquema de obtenção de informação sobre pessoas importantes, com vícios condenados pelas “altas classes”, a fim de chantagear esses indivíduos no momento certo) e manipulação das mentes através da imprensa. Esta imprensa e as narrativas oficiais dos gabinetes e das campanhas políticas vendem esses “grandes heróis da elite de Chicago” como os “salvadores do povo“, quando, na verdade, eles são os verdadeiros criadores da miséria em que a massa vive.
Willy Richards sabe como as coisas funcionam ali, mas pretende usar o poder de sua pena para escrever uma reportagem denunciadora, colocando o pérfido Howard Hogan na cadeia. É aí que as relações com Forte Ghost se dão de maneira mais organizada, uma vez que o texto cerca o massacre que aconteceu, fala das memórias perdidas de Ned e do exílio entre os indígenas Sioux, trazendo, portanto, a conversa sobre o “retorno à civilização”. É uma história bem simples em sua proposta geral, mas essa proposta é muito forte em seus temas transversais e muitíssimo bem abordada por Manfredi, que também adiciona os elementos místicos e misteriosos que envolvem a série, fazendo ambientações típicas de cenários de terror (outra característica do título) e procurando trazer algum problema capaz de gerar reflexões que ultrapassem a leitura em si.
Quanto à atmosfera de terror, os desenhos de José Ortiz são responsáveis pela melhor caracterização estética possível desse cenário. Sua arte é muito propícia para este ambiente esquecido, superpopuloso e faminto, ressaltando cenários decadentes ou abandonados, sujos e de aparência medonha. Da finalização dos desenhos à forma de mostrar pessoas e cenários para o leitor, Ortiz consegue criar uma sensação de medo e igualmente dar a impressão de atingir outros de nossos sentidos (como olfato, por exemplo) apenas pela qualidade e composição da arte que ele entrega. Em Lady Caridade, a sujeira, claro, não é apenas física, mas também ética, moral, política e social. E voltamos aqui, na parte estética, à dualidade que o roteiro de Manfredi nos apresentou, dando a oportunidade de fazermos a seguinte pergunta: os selvagens são os indígenas ou os cosmopolitas ditos civilizados?
A história nos faz refletir sobre conluios políticos e que também envolvem grandes meios de comunicação que acabam usando os mais pobres, aqueles que dependem de ajuda para sobreviver, como iscas para seus esquemas torpes. E o mais triste de tudo isso é que nem todos esses bandidos pagam pelos seus atos (pelo menos não quando deveriam pagar ou com a intensidade que deveriam pagar). Ao contrário, conseguem ainda mais poder e notoriedade no meio social. Nossa civilização está repleta de exemplos desse tipo, nos mais diversos tempos e nas mais diversas áreas.
Mágico Vento – Vol.3: Lady Caridade (Lady Charity) — Itália, setembro de 1997
N o Brasil: Editora Mythos, 2018 e 2020
Roteiro: Gianfranco Manfredi
Arte: José Ortiz
Capa: Andrea Venturi
100 páginas