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Crítica | Máfia da Dor

Sem dor, sem ganho.

por Ritter Fan
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Assim como vários outros, David Yates é, em essência, um diretor de aluguel, daqueles que, em linhas gerais, entregam resultados tecnicamente eficientes, mas, via de regra, sem nenhuma imaginação. Sei que os fãs da franquia Harry Potter vão chiar, revirar os olhos e tudo mais, só que tudo o que ele dirigiu nesse universo foi típico dessa minha conclusão e seus três longas cinematográficos que escapam dele não são muito melhores, incluindo aí Máfia da Dor, objeto da presente crítica. Em outras palavras, ele é o diretor perfeito para contribuir com a cada vez mais onipresente homogeneização audiovisual, defenestrando toda e qualquer semblante de algo minimamente autoral, que tenha sua marca própria, coisa que até Michael Bay consegue ter.

O não-estilo de Yates não é um crime contra a Humanidade e nem algo que provavelmente incomode muita gente, só os “críticos chatos”, mas essa abordagem dele sobre seu ofício é particularmente evidente em Máfia da Dor, longa ficcional baseado no livro jornalístico Pain Hustlers: Crime and Punishment at an Opioid Startup Originally published as The Hard Sell, de 2022, escrito por Evan Hughes que expandiu um artigo de sua própria autoria sobre uma empresa farmacêutica americana que fazia absolutamente de tudo para levar os médicos a prescrever seu opioide em tese mais eficiente no alívio da dor em pacientes de câncer. É que, aqui, o diretor não só atira para todos os lados, como praticamente faz uma versão sub-sub-Martin Scorsese de O Lobo de Wall Street, mas sequer conseguindo chegar próximo do nível de Adam McKay em A Grande Aposta.

Claro que, assim como os dois filmes citados que se passam no mundo da especulação financeira, Máfia da Dor tem a vantagem de ter uma história interessante, daquelas capazes de irritar profundamente qualquer espectador, especialmente considerando que a obra fala da sujeira de toda a estrutura por trás indústria farmacêutica e especificamente de parte da crise dos opioides que assola os EUA e outros países do mundo. E, também de maneira semelhante às películas que tenta imitar sem nenhum pudor, Yates conta com um elenco de qualidade encabeçado por Emily Blunt, Chris Evans, Catherine O’Hara e Andy García que realmente conseguem elevar o resultado final, notadamente graças ao trabalho de Blunt.

Na história, Liza Drake (Blunt) é mãe solteira que faz de tudo para cuidar de sua filha adolescente Phoebe (Chloe Coleman – essa jovem tem futuro!), inclusive ser dançarina exótica em boate para homens. E é em uma dessas noites que ela conhece Pete Brenner (Evans), executivo de uma farmacêutica quase falida que lhe oferece, brincando, um emprego que pagaria 100 mil dólares por ano. Farejando lorota, Liza rejeita a oferta, somente para as circunstâncias a levarem a mudar de ideia em seguida e a, então, conseguir o tal emprego que consiste em basicamente convencer médicos a prescreverem o único medicamento oferecido pela empresa, algo que ela acaba conseguindo dentro do prazo de teste de uma semana. Daí em diante, é um festival de atrocidades que transformam a vida dela e de todos ao seu redor.

O problema do longa começa com o roteiro do estreante Wells Tower que acha que está escrevendo algo de complexidade ímpar a ponto de ele definir artificialmente tudo o que não for palavras e siglas de uso comum, transformando o longa em uma espécie de glossário farmacêutico. No mundo da especulação financeira, mais hermético, eu compreendo essa necessidade, mas mesmo assim Scorsese e McKay fazem esse trabalho de maneira natural ou, quando não é natural, de forma exagerada e cambando para a comicidade que tornam os momentos verborrágicos extremamente agradáveis. Em Máfia da Dor, Tower simplesmente derrama apostos nos diálogos, como em uma redação do ENEM escrita por um aluno com problemas de cognição. É de doer os ouvidos ter que escutar o que ou está escrito na tela ou evidente pelo contexto do que está sendo mostrado.

Mas aí vem o segundo e ainda maior problema: a direção de Yates. Obviamente querendo fazer o seu próprio Lobo de Wall Street (quanta pretensão…), o cineasta insere todas os artifícios audiovisuais contidos no “Manual do Diretor Descolado”, enquadrando a narrativa como um documentário, usando cortes rápidos que fazem o personagem olhar para a câmera e explicar a situação, montagens infinitas que vão desde as tentativas de Liza de convencer os médicos a seu processo de contratação de uma equipe de vendedores. E isso sem contar com fotografia em preto e branco em alguns momentos, câmera lenta, travellings e o que mais ele tinha à disposição para chamar atenção para si mesmo, o que resulta em um filme-Frankenstein, sem estrutura própria e que se autossabota e dilui tudo o que tenta fazer justamente porque tenta fazer coisa demais sem método algum e na base do quanto mais melhor.

Só que, como disse, a história em si salva o filme de ser um festival de frivolidades vazias e cansativas, com a atuação de Emily Blunt realmente elevando o conjunto a algo que acaba sendo passável. A atriz, mais uma vez, revela-se versátil e basicamente domina o espaço cênico com sua capacidade de quase que literalmente se transformar de uma dançarina exótica em uma executiva de uma grande empresa farmacêutica, andando na corda bamba entre a necessidade e a amoralidade, mas sem jamais perder a compostura ou aquele ar convincente de uma mãe capaz de tudo por sua prole, tipo de papel que ela já fez antes, só que em circunstâncias bem diferentes, na franquia Um Lugar Silencioso. E o elenco de apoio funciona também muito bem, com o Pete de Chris Evans servindo como comparsa/mentor de Liza e Catherine O’Hara encantando como Jackie, mãe e depois funcionária de Liza.

É portanto uma pena que Máfia da Dor não seja um veículo melhor para seu elenco ou mesmo para o assunto que aborda. Um filme desses na mão de um diretor que não acha que sua profissão é apenas apontar a câmera para o cenário e depositar um cheque gordo em sua conta tinha tudo para ser uma poderosa denúncia. Do jeito que ficou, ele é, apenas, mais um a ficar perdido dentre tantos outros de sua mediana categoria.

Máfia da Dor (Pain Hustlers – EUA, 27 de outubro de 2023)
Direção: David Yates
Roteiro: Wells Tower (baseado em artigo e livro de Evan Hughes)
Elenco: Emily Blunt, Chris Evans, Catherine O’Hara, Andy García, Jay Duplass, Brian d’Arcy James, Amit Shah, Chloe Coleman, Aubrey Dollar, Michael Kosta, Nick McNeil
Duração: 122 min.

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