Nós, seres humanos, temos a nossa vida e a nossa existência compostas por diversas camadas. Construímos a nossa própria história, intervimos de alguma forma no mundo ao nosso redor e somos moldados pelo conjunto de todas essas ações. Isso faz com que a nossa própria memória de vida e a memória histórica de nosso entorno, de nossa sociedade e de nosso tempo ganhem mais algumas linhas, cresçam, influenciem outras pessoas e transformem-se em narrativa. Costurada à existência social, nossa vida pessoal não está livre desse tipo de influência externa. Nossas relações interpessoais, nossas conquistas, nossas escolhas e caminhos de vida não estão isolados no mundo, antes, fazem parte de um todo que também diz sobre quem somos: seja por seguir, de bom grado, a norma social vigente; seja por ir contra ela de maneira crítica, política e engajada.
Para chegar a esse tipo de reflexão, porém, é necessário maturidade. A juventude produz gritos de fúria, tem energia o bastante para derrubar muros, levantar punhos e de maneira bastante imediata, agir sobre a conjuntura que pretende mudar. Mas a reflexão sobre todo esse arcabouço de atitudes só vem com a maturidade. Apenas o tempo tem a capacidade de produzir com o mínimo de coerência e provas as muitas faces de uma memória histórica. É através desse tempo transcorrido e da experiência que ele nos traz que podemos dividir a História em pedaços e estudá-la mais de perto, enfim percebendo-nos como parte de um todo, como alguém que muda e também é mudado pelo mundo em que vive. Em Mães Paralelas, Pedro Almodóvar mostra que sabe que envelheceu, e que depois de dar o primeiro indício disso em Dor e Glória, focando exclusivamente no Universo íntimo de uma pessoa que entende a passagem do tempo e as mudanças que isso traz para o seu corpo e a sua mente, volta-se agora para um Universo macro, onde os dramas particulares são vistos como siameses dos dramas políticos, históricos e sociais.
O roteiro de Mães Paralelas estava sendo rascunhado por Almodóvar já há bastante tempo, pelo menos desde a época de Abraços Partidos (2009). O presente momento é, de fato, o ponto certo de sua vida e de sua carreira para trazer a obra à tona, e digo isso por diversos motivos. Dentre eles, posso citar que este roteiro é uma crônica crua, aberta e nada floreada sobre memória, legado e traumas. Tendo o seu nome alcançado o posto de “marca cinematográfica” e não tendo mais que se provar para ninguém, Almodóvar pode se dar o luxo de realizar uma obra estética e até narrativamente diferente (ao menos na maior parte das cosias) de sua assinatura, daquilo que o público espera ver em um filme seu. Em vez disso, o diretor traz uma reticente história que versa sobre o período da ditadura de Franco, tocando no dilema vivido por milhares de famílias espanholas até os dias de hoje (vocês já viram O Silêncio dos Outros?), que não sabem onde estão os seus antepassados, que veem os nomes dos apoiadores da violenta ditadura franquista em ruas e avenidas e que sabem da impunidade de todos esses militares, assim como o impulso que essa impunidade dá para o surgimento de hordas extremistas na política nacional contemporânea.
Almodóvar poderia muito bem seguir com o melodrama materno, que por si só é bastante poderoso e envolve uma porção de sentimentos que vão da capacidade de ser mãe até a honestidade de dizer a verdade em um caso que pode mudar para sempre a sua vida. É bem “cinema de lágrimas” mesmo e a belíssima e tocante trilha sonora de Alberto Iglesias tem um papel importante na criação dessa atmosfera. Questões de relacionamentos pessoais, sexualidade, privilégio de classe e consciência política também são abordados no texto, com diferentes nuances. Mas o diretor optou por fazer uma virada no roteiro, assumindo que não poderia completar as duas histórias. A maneira como o filme termina é uma prova disso. O final aberto, reticente e até abrupto é uma indicação simples de uma história que continua, como a vida. É um momento onde o lado pessoal (por exemplo, a nova gravidez da personagem de Penélope Cruz, que entrega uma performance potente nesse filme) alinha-se à vida social e à resolução de um caso do passado, uma memória de morte que tem o seu contraponto com uma vida que está para vir ao mundo e, ao menos nessa família, com as pazes feitas com a História. O diretor não descarta aqui o aspecto sentimental e religioso da coisa toda, mas o seu foco principal é a justiça histórica de toda a situação.
Um pouco menos de tons vermelhos e um pouco mais de tons amarelos fazem parte das cores dessa crônica de Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit). As mulheres aqui estão em uma fase de ajustes pessoais, de algumas descobertas e entendimento de si em diferentes faixas etárias. Notem como Ana é representada, com toda a chatice jovem, com seus ciúmes e sua forma imatura de olhar o mundo, ao mesmo tempo que demonstra grande responsabilidade maternal para com sua criança. Para essa mulher, nessa idade, há um ponto de ruptura — inclusive política, porque ela vem de uma família de centro, que “ama a quem deve amar no momento“. Por outro lado, Janis é a representação da mulher madura e politizada que realiza acidentalmente um sonho e vai aprender muitas coisas com isso, inclusive deixar partir quem deve partir.
As maternidades paralelas indicam a representação do amor e do comprometimento em diferentes gerações, assim como o olhar para a feminilidade em fases diferentes da vida e a posição de cada uma dessas mulheres para com o mundo que as cerca. Quem deve ser priorizado? Filha e neta ou uma carreira de atriz que começou tarde e conseguiu alcançar sucesso? A verdade que pode tirar-lhe um bebê ou a mentira que pode manter esse laço materno ao preço de uma consciência pesada? A importância para resolver um caso do passado ou o desprezo por essa memória histórica e foco alienado no presente, “que é o que importa, afinal… os mortos já estão mortos“? O filme também poderia se chamar “gerações paralelas“, “traumas paralelos” ou “engajamentos políticos paralelos”, porque ao cabo, é também isso que Almodóvar acaba discutindo.
Mesmo sem o refinamento estético típico de suas obras (não sem motivo, convenhamos) e com um roteiro pensado de maneira mais solta, o cineasta consegue quebrar um pouco a sua bolha melodramática com um tema frio, triste e denso, mas que faz parte da vida de inúmeras mães paralelas, de todas as idades, em qualquer país do mundo onde ditadores e suas falanges assassinas desapareceram com oponentes políticos e os enterraram em valas comuns, jogaram no mar ou em lugares onde não poderiam ser encontrados. Mudar o mundo e criar uma nova vida (metafórica ou literalmente) é extremamente importante. Mas de igual importância é saber quando fechar, definitivamente, um ciclo trágico. Essa é a encruzilhada na qual a derradeira cena de Mães Paralelas nos deixa. O que vem a partir daí a gente pode enxergar ao nosso redor, no nosso dia a dia.
Mães Paralelas (Madres Paralelas) — Espanha, 2021
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Penélope Cruz, Milena Smit, Daniela Santiago, Israel Elejalde, Aitana Sánchez-Gijón, Rossy de Palma, Julieta Serrano, Auria Contreras, Carmen Flores, Alice Davies, Ainhoa Santamaría, Adelfa Calvo, Arantxa Aranguren, Inma Ochoa, Julio Manrique, Pedro Casablanc
Duração: 123 min.