Madame DuBarry (1919), de Ernst Lubitsch, é um filme histórico mesclado a uma narrativa biográfica. O roteiro costura as tensões entre desejo, poder e transformação social, criando um painel que dialoga com questões emocionais, obsessões e condições sócio-políticas em momentos distintos da história da França. A trajetória de Jeanne Gomard de Vaubernier (Pola Negri), futura Madame la Comtesse du Barry, é um espelho das contradições de uma sociedade prestes a implodir sob o peso de seus abismos estruturais, e Lubitsch, com sua sofisticação característica, nos conduz por essa narrativa dissecando os mecanismos de ascensão social e os jogos de poder no Antigo Regime.
O filme apresenta uma protagonista multifacetada, cuja vulnerabilidade se junta à capacidade de manipular os sistemas de dominação que a cercam. Pola Negri, em uma performance magnética (mas que traz as nuances afetadas do cinema de seu tempo), transforma cada gesto e olhar num campo de negociações simbólicas, transitando entre objeto de desejo e sujeito histórico com tanta rapidez, que algumas cenas parecem incompletas. A cada momento, percebemos como o corpo feminino é apresentado não apenas como território de desejo, mas também como instrumento político e reflexo de disputas sociais. Em uma das primeiras sequências, vemos Jeanne, uma simples assistente em uma loja de chapéus, ascender socialmente ao se envolver com homens poderosos, numa progressão que, embora aparentemente individual, é também profundamente emblemática das relações de dominação e privilégio que estruturavam a sociedade europeia.
A direção de Lubitsch dá força sociológica ao melodrama. A trama não é apenas sobre Jeanne; é sobre como os sistemas sociais moldam, consomem e, eventualmente, destroem os indivíduos. O filme mostra o fluxo de desejo e poder nos indivíduos nas instituições, com destaque para Emil Jannings como Luís XV, cuja ótima performance encapsula a decadência do absolutismo, especialmente na sequência de morte do seu personagem. Ao mesmo tempo, a narrativa explora a ambiguidade moral de Jeanne, cujas ações, embora motivadas pela sobrevivência e ambição, revelam a complexidade de uma personagem que se recusa a ser definida apenas pelas circunstâncias de sua já conhecida origem humilde.
Visualmente, o longa é admirável. O desenho de produção e, principalmente, os ricos figurinos, reconstroem o período histórico e dialogam com as representações de poder e desigualdade. As cenas de multidão são especialmente impressionantes para um filme de 1919, compostas por planos que mostram os movimentos coletivos antes e durante a revolução. A queda da Bastilha e a execução de Jeanne são blocos esteticamente aplaudíveis, com a grandiosidade do espetáculo se aliando ao peso simbólico da narrativa, transformando a massa em protagonista de um drama que, infelizmente, aparece de maneira bem curta e com buracos de continuidade que comprometem a versão histórica proposta pelo diretor.
O ritmo da narrativa, em certos momentos, carece de fluidez, e a profundidade emocional dos personagens, embora presente, não alcança sempre a mesma magnitude da grandeza visual que permeia a película. O roteiro, ao condensar eventos históricos e adaptar a linha do tempo em favor do drama, abre espaço para uma discussão mais ampla sobre as relações entre história, narrativa e poder, mas, como eu já disse antes, deixa alguns buracos no andamento, e traz cenas estruturalmente incompletas ou acavaladas. Neste drama factual, Lubitsch nos convida a enxergar a história não como uma sequência linear de eventos, mas como um campo de forças em constante negociação, onde cada escolha, cada ação, reverbera no tecido coletivo. É nesse diálogo entre o individual e o público que o filme encontra sua verdadeira força, nos deixando com a reflexão de que, no fim, somos tanto produtos de nosso tempo quanto agentes de sua transformação.
Madame DuBarry (Alemanha, 1919)
Direção: Ernst Lubitsch
Roteiro: Norbert Falk, Hanns Kräly
Elenco: Pola Negri, Emil Jannings, Harry Liedtke, Eduard von Winterstein, Reinhold Schünzel, Else Berna, Fred Immler, Gustav Czimeg, Karl Platen, Bernhard Goetzke, Victor Janson
Duração: 113 min.