A sequência climática de Mad Max 2: A Caçada Continua é uma longa, violenta e desesperada fuga de um caminhão tanque pilotado por Max Rockatansky pela Austrália devastada em direção à uma mítica terra prometida, com um monstruoso líder mascarado e seus estranhos soldados em seu encalço. Funciona perfeitamente para a meia hora final do segundo longa-metragem da franquia, mas dificilmente funcionaria como a premissa de um filme inteiro. George Miller, 30 anos depois de Mad Max: Além da Cúpula do Trovão, traz seu protagonista de volta para as telonas reescalando Mel Gibson e entregando o papel a Tom Hardy, e mostra que sim, uma perseguição automobilística nestes exatos moldes pode tomar quase que a integralidade de uma obra cinematográfica e tornar-se um veloz, furioso, brutal, inclemente, alucinante, vibrante e absolutamente contagiante espetáculo visual daqueles que o espectador sai exausto e feliz depois de passar 120 minutos sem respirar e agarrado ao braço da poltrona do cinema.
Mad Max: Estrada da Fúria é a prova mais concreta em memória recente de que o puro entretenimento não precisa ser alienante, podendo e devendo ser politicamente engajado, narrativamente sólido e visualmente embasbacante a ponto até de muitos que insistem em ficar apenas na superfície – como tem gente que se esforça nessa missão, viu? – concluírem mesmo que acabaram de assistir a algo simples, que não exige o uso de massa cinzenta. Sim, a premissa básica do filme é simples, não mais do que uma longa perseguição – em duas direções – durante 120 minutos, mas o roteiro que Miller escreveu ao lado de Brendan McCarthy e Nick Lathouris é uma aula magna de como construir e desenvolver mitologia e discutir aspectos socialmente relevantes sem didatismo, sem quase que literalmente parar a projeção para o derramamento de explicações redundantes. No frenesi que é Estrada da Fúria, o que a trinca de escritores entrega é um texto que se confunde com a imagem – com Miller fazendo então a imagem se confundir com o texto – como muito poucos filmes de ação conseguem fazer, especialmente ação ininterrupta como a que pode ser vista aqui.
Aliás, é impressionante como há pouco diálogo no filme, outra prova de que muito pode ser dito com imagens. A aparência e o destaque dado a Imperator Furiosa (Charlize Theron) é a primeira indicação de criação instantânea de passado complexo – ela não tem um braço, é careca, em princípio obediente a um tirano que usa água e altura para manter seu poder sobre meros mortais – e de uma mensagem feminina forte, de libertação da mulher do jugo masculino. E não, não revirem os olhos, vocês que insistem em ver apenas a superfície, pois isso é muito claramente a óbvia mensagem central do filme, algo que está tão no coração da narrativa que Max Rockatansky, o grande herói das terras devastadas, é colocado quase que como um coadjuvante em um filme que leva seu nome, sendo no máximo um coprotagonista que existe para oferecer os instrumentos necessários para tornar possível a fuga de Furiosa, incluindo aí o próprio Nux de Nicholas Hoult que vem literalmente acorrentado a ele, um a reboque do outro.
É também impressionante como cada personagem central – Furiosa, as Noivas em conjunto, Nux e Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne, que viveu Toecutter, o líder da gangue vilã do primeiro filme, em uma escolha ao mesmo tempo inspirada e respeitosa ao ator) – funcionam como peças de construção de universo só por existirem, com detalhes de suas vidas – os detalhes estritamente necessários para o longa, vale dizer – sendo distribuídos a conta gotas ao longo da projeção para dar vida a esse microcosmo desse recorte de mundo pós apocalíptico. Vemos Furiosa querendo retornar para o idílico lar de onde foi arrancada há mais de 20 anos; as Noivas seguindo o sonho de liberdade da líder; Nux primeiro idolatrando seu líder, mas, depois, perdendo sua inocência e vendo que o mundo é maior e mais bonito do que ele imagina; e, finalmente, Immortan Joe querendo perpetuar-se no poder por meio de um “filho perfeito”, desejo que tem embutidos traços de eugenia e de supremacia racial, além de um profundo egoísmo, e que exige que ele mantenha belas mulheres trancafiadas em seu harém particular, em uma vida de escravidão sexual. E o roteiro faz tudo isso sem recorrer à violência explícita e exagerada, sem sanguinolência excessiva que um filme desses em tese realmente pede – e que Miller mostrou especialmente no segundo capítulo da saga -, algo que só é realmente possível de maneira verossimilhante quando quem está no comando tem uma visão clara do que quer alcançar e Miller troca essa explicitude por um ritmo frenético tão intenso que chega a ser exaustivo (no melhor dos sentidos).
Quando eu digo que Estrada da Fúria é uma rara fusão perfeita de conteúdo e visual, de forma e substância, não estou sendo hiperbólico ou exagerado, pelo menos não acho que esteja. Meu ponto é que não estamos diante de um filme em que falar de uma coisa separadamente da outra é realmente possível ou justo, pois o que Miller fez foi celebrar um casamento em que não conseguimos identificar a fronteira entre uma coisa e outra. É a narrativa audiovisual por excelência. E isso ele alcança com uma visão macro impressionante que é materializada por equipe técnica imbatível em todos os aspectos, direção de arte, fotografia, efeitos especiais, maquiagem e penteado, coordenação de dublês e todos os nomes que só vemos quando paramos para observar os créditos subindo ao final do filme, isso quando não levantamos antes da cadeira do cinema ou clicamos no stop.
Falar de tudo é impossível, pelo que destacarei dois aspectos centrais e fundamentais para o sucesso do filme. O primeiro deles é a fotografia de John Seale que, fazendo um exuberante contraste do laranja com o azul, duas das mais tradicionais cores complementares, especialmente no Cinema, cria um imagético quente, ardente mesmo, que amplifica a excitação e tensão do que vemos em tela, algo que é complementado pelos figurinos normalmente espalhafatosos e multicoloridos, além de personagens inesquecíveis como o guitarrista cego que, juntamente com os “batedores de bumbo”, criam a trilha sonora diegética da perseguição. É como um enorme e irresistível desfile de escolas de samba concorrentes no literal meio do inferno cuja montagem cirúrgica de Margaret Sixel magicamente impede qualquer tipo de confusão espacial e temporal, abrindo espaço inclusive para que o elenco, mesmo o coadjuvante, tenha o devido destaque em meio ao que parece ser o mais completo caos.
E isso me leva ao segundo aspecto: os efeitos especiais. Quando George Miller e seu amigo Byron Kennedy encasquetaram de fazer o que acabaria sendo Max Max, em 1979, eles não tinham orçamento para fazer nada que não fosse na raça, na base do Cinema de Guerrilha, da câmera na mão em cima de uma moto a 150 km/h em uma estrada australiana. Mad Max 2 e Além da Cúpula do Trovão, até por serem obras oitentistas, mantiveram essa pegada autêntica, de efeitos práticos, ainda que com muito mais sofisticação e, claro, muitos mais cifrões para torná-los possíveis com essa sofisticação toda. Considerando o advento do CGI e o fato de Miller ter trabalhado em longas que fizeram o uso da tecnologia, era de se esperar que os bits e bytes fossem onipresentes em Estrada da Fúria, especialmente em razão do escopo e da sandice visual do filme. No entanto, para a felicidade de todos, a computação gráfica fez papel coadjuvante no longa, servindo muito mais para ampliar cenários, como é o caso do deserto da Namíbia, onde grande parte da produção foi filmada, para “apagar” cabos e outros apetrechos usados para tornar possíveis as sequências de ação e para o braço inexistente de Furiosa.
Segundo consta, 80% dos efeitos de Estrada da Fúria são práticos, com dublês realmente amarrados em varas presas em carros em movimento, capotagens espetaculares a torto e a direito e explosões apocalípticas pontuando as tomadas em plano aberto. Em outras palavras, Miller – ainda que com um orçamento mais do que generoso de para lá de 150 milhões de dólares – voltou ao “básico” (entre aspas, pois de básico os efeitos práticos não têm nada) e fez com que sua equipe a frente e principalmente atrás das câmeras quase que passassem pela mesma experiência dos personagens fictícios. Isso, por si só, pelo menos em meu caderninho, já eleva o longa e Miller a um outro e muito elevado patamar, o mesmo em que um punhado de diretores atuais que se recusam a seguir o caminho mais fácil para blockbusters insistem em trilhar, tornando-se os últimos bastiões de um tipo de Cinema que, infelizmente, está para acabar.
Sei que é um crime deixar de falar da potente trilha sonora do holandês Tom Holkenborg, vulgo Junkie XL, dos figurinos de Jenny Beavan, da mixagem e edição de som de Chris Jenkins, Gregg Rudloff e Ben Osmo e de tantas outras características e nomes que fizeram de Estrada da Fúria o filme que ele é, mas a grande verdade é que o que Miller colocou nas telonas é uma joia rara e, portanto, extremamente valiosa para o cinema arrasa quarteirão moderno. Trata-se de uma obra-prima de alta octanagem que mostra tanto a cineastas como a espectadores que entretenimento de qualidade é entretenimento que oferece mais do que algumas horas de bobagens vazias e rasas para serem assistidas com o cérebro desligado.
Versão em 3D:
Para escrever a presente crítica, reassisti o filme também em 3D – trata-se do único Blu-Ray que tenho assim e sequer consigo me lembrar do porquê -, depois de tê-lo visto nos cinemas das duas maneiras quando de seu lançamento. Como já esperava, minha opinião da época manteve-se. Sabem da emblemática gota d’água, aquela que faz o copo derramar? Pois isso é o que o 3D em Estrada da Fúria faz com o filme, leva-o ao exagero desnecessário, ao artifício bobinho para vender ingressos mais caros, algo que o filme definitivamente não precisava para ser a obra-prima que é, resultando em algo inferior.
E isso fica muito evidente pelo fato de o filme não ter sido filmado em 3D nativo, mesmo que George Miller tenha tido o cuidado de criar sequências suficientes de ação que parecem levar a tecnologia em consideração para a conversão que acabou sendo feita (a filmagem nativa, que Miller até queria fazer, foi vetada pelo estúdio por questões orçamentárias). Não gosto, porém, das brincadeiras de “objetos jogados na cara do espectador” que o cineasta faz para fazer valer o investimento no ingresso 3D, já que esse tipo de uso da tecnologia é o mais artificial e, portanto, pior possível, não sendo mais do que uma versão mais bem acabada do 3D de filmes dos anos 50, aqueles que exigiam óculos com uma lente azul e outra vermelha, normalmente feitos de cartolina, e que viviam de arrumar desculpa para tudo ser arremessado na câmera.
Em outras palavras, na comparação com a versão 2D e no uso da tecnologia, que é o que, em última análise, julgo aqui, Estrada da Fúria 3D fica bem abaixo qualitativamente de sua versão original e do literal punhado de filmes 3D que, para mim, realmente justificam o emprego da estereoscopia. A jornada de Furiosa e Max já é frenética o suficiente para precisar desse cambalacho audiovisual que James Cameron fez renascer, mesmo que ele não tenha culpa pelo uso desenfreado e irresponsável que Hollywood fez de seus aperfeiçoamentos depois que o cineasta abriu a Caixa de Pandora (he, he, he).
Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road – Austrália/ EUA, 2015)
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller, Brendan McCarthy, Nick Lathouris
Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne, Josh Helman, Nathan Jones, Zoë Kravitz, Rosie Huntington-Whiteley, Riley Keough, Abbey Lee, Courtney Eaton, John Howard, Richard Carter, iOTA, Angus Sampson. Jennifer Hagan, Megan Gale, Melissa Jaffer, Melita Jurisic, Gillian Jones, Joy Smithers, Antoinette Kellerman, Christina Koch, Jon Iles, Quentin Kenihan, Coco Jack Gillies, Chris Patton, Stephen Dunlevy, Richard Norton
Duração: 120 min.