É muito provável que as gerações mais novas só lembrem de George Miller por suas obras mais leves, como Babe – O Porquinho Atrapalhado e sua continuação Babe – O Porquinho Atrapalhado na Cidade e Happy Feet: O Pinquim e sua continuação Happy Feet 2: O Pinguim. Mas a relativamente curta filmografia do diretor australiano – apenas 16 obras entre curtas e longas – começa de verdade com uma das mais violentas franquias do cinema e não com fofos animaizinhos, o que pode fazer muita gente arregalar os olhos em surpresa.
Indo mais para trás ainda, na verdade, Mad Max é uma espécie de evolução natural do trabalho de Miller, então um médico, depois que debutou na direção com o curta Violence in the Cinema, Part 1, em 1971, em que brinca com o assunto do título, matéria quente nas décadas de 70 e 80, com discussões acadêmicas que famosamente envolveram Laranja Mecânica, do mesmo ano, e o próprio Mad Max, em 1979, que foi banido na Nova Zelândia e Suécia. Miller, que escreveu o roteiro de seu primeiro longa com James McCausland, criou um sub-gênero com Mad Max, o do road movie apocalíptico, semelhante ao que George A. Romero fez com zumbis mais de dez anos antes, usando a violência como elemento intrínseco, sem, porém, glorificá-la.
“Como assim sem glorificá-la?” – alguns perguntarão. Reparem como a violência é trabalhada, primeiro, em um futuro distópico, decisão consciente tomada por Miller para deslocá-la de nossa realidade e, assim, torná-la mais, digamos aceitável. Mas essa não é a única razão. A violência que vemos é alegórica, cometida por loucos, com loucos tentando evitá-la. Afinal, a gangue de motoqueiros comandada por Toecutter (Hugh Keays-Byrne) e que toca o terror após a morte de Nightrider (Vincent Gil) pelas mãos (ou seriam rodas?) de Max (Mel Gibson), policial da MFP, Main Force Patrol, é formada por seres bizarros e exagerados, que tornam os atos de barbárie frutos de mentes insanas. Mesmo a força policial é retratada de maneira a mostrar a loucura tomando cada um de seus membros. Não há ninguém realmente “normal” na narrativa de George Miller, em uma espécie de crítica à nossa sociedade justamente ao retratar uma Austrália futurista perdida, com a sociedade na beira da total fragmentação.
Aliás, a distopia criada por Miller com orçamento parco (o filme não passou de 400 mil dólares) é muito relativa. Apesar de ele deixar claro que estamos alguns poucos anos no futuro, não fica desde logo evidente que a história se passa em um mundo pós-apocalíptico. Não há dúvidas de que se trata de uma distopia, mas não necessariamente do tipo “fim do mundo”, apesar de o segundo filme efetivamente se passar após o apocalipse. Mas, alguns poucos elementos usados por Miller vão deixando a impressão de que há “algo errado”, com o foco no Halls of Justice, sede da polícia que parece velha, caindo aos pedaços e comandada por seres estranhíssimos. Mas existe um sistema judiciário funcionando ainda, assim como há menções a metrópoles e uma sistema organizacional maior. McCausland, então roteirista de primeira viagem, ainda insere elementos relacionados com a crise de combustível por que o mundo passava nessa época, dando a entender a existência de certa escassez, mas que não chega a ser trabalhado de verdade na história.
E há ainda estranheza causada pelo contraste exagerado da vida idílica que Max vive com sua esposa e filho (cujo nome é Sprog – que raios de nome é esse?), em local verdejante e tranquilo. Ao estabelecer essas diferenças, Miller cria um filme que passa mensagens truncadas sobre exatamente em que situação a narrativa se desenrola. Não é imediata, assim, a conclusão de que estamos vendo um mundo pós-apocalíptico. Parece muito mais uma realidade alternativa na linha de Ruas de Fogo (another time, another place) do que um mundo à beira da extinção, mas que, de certa forma e muito em razão da continuação de 1981, aceitamos simplesmente por aceitar que assim o é.
Em termos de roteiro, não há muito o que falar. As motivações da gangue de motoqueiros para os atos que cometem são irrelevantes. Com isso, fica, apenas, a força policial em oposição e, mais para a frente, o sentimento de vingança que efetivamente transforma Max em Mad Max. Mas, dentro de sua simplicidade, o trabalho de Miller e McCausland sabe apresentar seus personagens e, mesmo deixando-os rasos, permite a empatia do público, mesmo no caso de Goose (Steve Bisley), melhor amigo de Max e até mesmo dos ensandecidos Toecutter, Johnny the Boy (Tim Burns – nome muito apropriado, aliás…) e Bubba Zanetti (Geoff Parry, um sósia de Liev Schreiber ao ponto de ser assombroso). Mas o destaque fica mesmo com Max, que o roteiro tem o cuidado de mostrar não como alguém que vive sua vida normalmente, mas sim como um membro da força policial que realmente tem prazer naquilo que faz, especialmente quando algum tipo de violência está envolvido. Ao sermos apresentados a Max, com mistério e vagar na perseguição inicial de 15 minutos, Miller trabalha seu personagem como uma figura mítica, mas que, ao adentrar em sua psiquê, ainda que rapidamente, vemos um homem obcecado, quase já merecedor da alcunha “louco” do título. A tragédia que acaba efetivamente levando-o a um caminho sem volta é, apenas, a proverbial gota d’água.
Mel Gibson, vale dizer, não faz feio no filme. Não que sua atuação (sua segunda em um longa) seja brilhante, longe disso, mas ele consegue um ótimo equilíbrio entre bom-mocismo e insanidade ao seu personagem, com aquele olhar vidrado que passaria a ser a marca registrada do ator nas décadas seguintes, notadamente na tetralogia Máquina Mortífera. É bem verdade que seu personagem é simples e o ator não tem muito com que trabalhar, mas ele, graças a um bom trabalho de câmera de David Eggby, que sabe enfocá-lo, extraindo emoções que talvez não estivessem lá de outra forma, cria um Max memorável, que trafega no fio da navalha entre a normalidade e a loucura.
O orçamento reduzido que George Miller teve para criar sua obra forçou-o a ser criativo e uma de suas saídas para reduzir os atores contratados foi arregimentar clubes verdadeiros de motoqueiros que usaram suas próprias motos nas filmagens. Os figurinos foram reduzidos ao máximo possível, com apenas Mel Gibson e Steve Bisley recebendo vestimentas feitas de couro verdadeiro (uma curiosidade: um dos mais famosos posteres do filme mostra uma arte do uniforme de Goose, personagem de Bisley, um motoqueiro, não de Max) e os demais apenas de vinil, isso quando muito. Mas é diante das adversidades é que um grande diretor consegue se sobressair de verdade e Mad Max não economiza no uso de excelentes sequências de efeito prático envolvendo os mais variados acidentes automobilísticos, valendo especial destaque para a colisão de um dos vilões com um caminhão mais para o final. São cenas que exalam veracidade, sem os exageros hollywoodianos a que somos expostos hoje em dia.
Mad Max é um sub-gênero em si próprio, que, ao longo da década seguinte, gerou duas ótimas continuações e um sem-número de imitadores que jamais chegaram aos seus pés. Sem medo de encarar a violência de cabeça, Miller marcou profunda presença na Sétima Arte ao nos brindar com um dos policiais mais icônicos das telonas.
Mad Max (Mad Max, Austrália – 1979)
Direção: George Miller
Roteiro: James McCausland, George Miller
Elenco: Mel Gibson, Joanne Samuel, Hugh Keays-Byrne, Steve Bisley, Tim Burns, Roger Ward, Lisa Aldenhoven, David Bracks, Bertrand Cadart, David Cameron, Max Fairchild, Jonathan Hardy, Geoff Parry
Duração: 91 min.