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Crítica | Macunaíma

por Leonardo Campos
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Ao longo da história do cinema, muitas obras literárias foram ponto de partida para a realização de filmes. Há muitos cineastas competentes no processo de tradução entre meios tão distintos. Joaquim Pedro de Andrade é um deles. Em O Padre e a Moça, o poema de Drummond serviu como inspiração para um filme onde o apuro estético se delineia. Quando produziu Macunaíma, o cineasta já havia comprovado a sua habilidade com a linguagem cinematográfica, algo que lhe deu a segurança necessária para elaborar um pensamento profundo sobre os brasileiros. Junto a isso, permitiu-lhe travar um eficiente contato entre o seu filme e o público, algo que poucos realizadores do Cinema Novo conseguiram, pois como sabemos, o hermetismo de determinados filmes fez com que algumas produções se tornassem obsoletas ou ponto central de discussões apenas entre intelectuais.

Por meio do herói que festeja muito, mas é “devorado” pelo sistema, Macunaíma faz uma análise de um momento onde o mais forte engole o mais fraco, num ambiente simbólico repleto de contato com a realidade dos brasileiros em pontos específicos da sua história, inclusive o atual, um cenário político repleto de contradições e inseguranças. O ato de “devorar” a que me refiro está interligado com as relações econômicas e sociais cotidianas, tensas, apesar da constante reafirmação de mitos próprios do povo brasileiro, tal como a sua cordialidade, o seu caldeirão racial que “ferve sem queimar”, dentre outras falácias que constantemente se discute quando o assunto é “entender o Brasil e os brasileiros”. Com sua linguagem carnavalesca, a produção emula as ideias de Mário de Andrade, mas faz uma leitura imbricada com o contexto histórico de seu lançamento, uma época ímpar para o país, mergulhado no militarismo que deixou marcas extremamente profundas em diversos setores da sociedade.

Com ecos do que se produzia no bojo da ebulição cultural europeia dos anos 1960, em especial, as relações com Pocilga, de Pasolini, e Weekend à Francesa, de Godard, bem como a criação de um tecido crítico que mesclava entretenimento com reflexão social, sem deixar um eixo desequilibrar o outro, em Macunaíma, o realizador assume a direção e o roteiro, demonstrando ser capaz de atar tais pontas da maneira mais orgânica possível.

A jornada do personagem título, tal como a “trajetória do herói”, é uma saga do campo ao urbano, com retorno ao ponto de origem em seu desfecho. Sincrético, o personagem passa por transformações que alegorizam a formação do povo brasileiro: negro em seu nascimento, vive tal como um índio, tornando-se um branco mais adiante. O filme inicia com o nascimento de Macunaíma (Grande Otelo) numa aldeia próxima ao rio Uraricoera. Ele vive com a sua mãe, os irmãos Jiguê (Milton Gonçalves) e Maanape (Rodolfo Arena), além da cunhada Sofará (Joanna Fomm). Sem falar nada até os seis anos, o personagem se expressa por meio da sua língua através de uma frase singular: “ai que preguiça”. Inquieto e traquina, Macunaíma precisa sair de casa após uma situação inusitada e durante em sua jornada errante, encontra uma criatura, o lendário Curupira, interessado em devorá-lo. Escapa nesta primeira investida, encontra uma fonte de água mágica e ao se banhar, torna-se branco.

Juntamente com a sua família, Macunaíma (agora Paulo José) parte rumo á cidade num pau-de-arara. Atordoado com o caos do ambiente urbano, depara-se com um grupo de guerrilheiras, apaixona-se por uma delas, Ci (Dina Staf), tem um filho negro (Grande Otelo em outro personagem) e se mete em diversas confusões, inclusive na saga em busca do muiraquitã, uma pedra com bastante significado para a narrativa, parte da mitologia do personagem. Depois de atravessar uma existência cheia de percalços, é atraído por Yara, a comedora de gente, figura que devora Macunaíma e fecha o seu ciclo de vida.

Lançado numa época em que as pessoas acreditavam que tudo podia dar certo, Macunaíma é um filme intenso. Seu final irônico, pessimista, revelava o tom de ironia do cineasta responsável pela produção. Em A Utopia no Cinema Brasileiro, Lúcia Nagib reforça que semelhante ao que Nelson Pereira dos Santos traz em Como Era Gostoso Meu Francês, Joaquim Pedro de Andrade buscava uma síntese do brasileiro, tendo em vista construir uma alegoria que desse conta da situação política do momento em questão, a efervescente década de 1960. Além disso, o filme tem como personagem central uma figura que “desfia uma identidade que se reporta ao brasileiro”, tal como afirmou Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal. O que ambos os pesquisadores refletem sobre Macunaíma é o seu potencial de representação do brasileiro e das suas contradições enquanto um dos povos de caráter mais multicultural do mundo, uma mistura que permite extensas discussões referentes ao conceito de idade cultural, algo que por sua vez, coaduna em questões políticas.

Com traços do Tropicalismo, Macunaíma mescla elementos eruditos e populares, faz o kitsch encontrar o gosto refinado. Intelectual, mas popular, o filme trouxe atores da televisão, figurinos bastante coloridos, sem perder, como apontado anteriormente, o rigor político e estético. Ao longo de seus 110 minutos, o filme traz a eficiente narração de Tite de Lemos, direção de arte e figurino de Anísio Medeiros e montagem eficiente de Eduardo Escorel. Com clássicos populares de Jards Macalé, Sílvio Caldas, Oreste Barbosa e Heitor Villa-Lobos, o filme é parte da lista dos 100 Melhores Filmes Brasileiros de todos os tempos, realizada pela ABRACCINE.

Macunaíma — Brasil, 1969
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade
Elenco: Dina Sfat, Grande Otelo, Jardel Filho, Milton Gonçalves, Paulo José, Rodolfo Arena, Joana Fomm, Hugo Carvana, Wilza Carla, Zezé Macedo.
Duração: 108 min

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