A obra de Shakespeare, especialmente os dramas históricos e as tragédias de cunho político, é marcada por personagens que buscam o poder a todo custo, muitas vezes contando com forças que a curto prazo lhe são favoráveis mas rapidamente são sopradas pelo vento para uma outra direção, seja pelo convencimento mercenário, seja pela morte que lhe chega na forma de acusação de traição.
No caso de Macbeth, no entanto, a figura é um pouco diferente.
O bardo quis trabalhar a metáfora do acaso e o que isso pode desencadear em pessoas cujas ambições são ilimitadas, não tendo barreiras morais para frear atos como assassinato, usurpação e outros crimes, e então criou a figura das três bruxas, que já no início do 1º Ato traçam o destino de Macbeth e Banquo, abrindo caminho para uma saga de sangue e paranoia vivida pelo protagonista da tragédia, um caminho que é pavimentado pela loucura ainda maior de Lady Macbeth, a voz da cobiça pelo poder atrás do guerreiro.
Após o lançamento do badalado A Dama de Shangai (1947), Welles se propôs um desafio em vários níveis. O primeiro deles, adaptar uma famosa tragédia de Shakespeare para o cinema com o texto original mas sem a dinâmica cênica de “teatro filmado”. E o segundo, fazer isso em um menor espaço de tempo possível e com o menor gasto possível.
Utilizando-se de um orçamento mínimo e cenários que pareciam saídos de um filme de terror “B” ou um sci-fi do mesmo subgênero, Welles marcou a sua primeira experiência shakespeariana com um filme esteticamente cru, mas cinematograficamente louvável.
Muito se fala da oposição quase ideológica do cineasta em relação a Laurence Olivier, que estava filmando Hamlet praticamente ao mesmo tempo em que Welles filmava Macbeth, uma divergência na forma de enxergar Shakespeare e que fez com que ambos os cineastas erguessem a pedra angular do que seria o teatro do bardo no Cinema Moderno.
Olivier dirigiu Henrique V, Hamlet e Ricardo III. Welles dirigiu Macbeth, Othello e Falstaff. Seis grandes obras de dois diretores com visões distintas sobre o que deveria receber atenção ou não numa adaptação de Shakespeare; que modelo dramático seria mais eficaz para destacar um vilão; como tratar os eventos sobrenaturais das peças utilizando a gramática do cinema moderno, e, principalmente, como manter Shakespeare original adaptando-o para uma mídia de grande massa.
Em Macbeth – que Welles retirou imediatamente do Festival de Veneza ao saber que Olivier tinha inscrito Hamlet -, temos um visual que é um amálgama de tempos, estrutura de composição artística que o diretor fez questão de manter, fosse no exagero das cruzes celtas, no vestido dos anos 40 numa peça ambientada na Escócia do século XI, nas armaduras e coroas estilizadas – como uma bizarra peça de arte moderna – nas pedras luzentes de papel machê e no cenário grandioso em tamanho e vazio de objetos.
Não há como negar que as escolhas aqui realizadas tendem a afastar espectadores puristas, clamantes por verossimilhança e de pé atrás com experimentos cinematográficos. Mas por um outro lado, como ver com olhos de menosprezo esse ambiente opressivo, claustrofóbico e estranhamente selvagem que compõe o cenário principal da peça, o castelo de Macbeth, já coroado rei?
A fotografia ilumina as “pedras” do castelo como se quisesse refletir a imagem de um homem atormentado por uma consciência infectada, uma luta moral que quase nos faz ter dó de Macbeth, fraco demais para resistir a influência da maligna esposa; avarento demais para resistir à tentação do poder; consciente demais para aceitar o acaso (ou o destino) que lhe fora traçado pelas bruxas – aqui, druidesas celtas -, a ponto de aceitar a morte como uma benção possível, o único evento que lhe poderia apagar de vez a culpa, mas contra o qual ele lutaria, se pudesse – um exemplo memorável de autopreservação, mesmo se vendo condenado.
O único elo fraco no Macbeth de Welles é o elenco, principalmente Jeanette Nolan, que faz o papel de Lady Macbeth. A atriz era inexperiente e estava em seu primeiro longa, fator que talvez explique sua atuação desajeitada e insossa, mas que não é uma desculpa aceitável, uma vez que temos um grande número de atrizes que debutaram em papeis dramáticos e fizeram trabalhos excelentes. Em seguida, os atores mais jovens, que destoam grandiosamente da densa atmosfera criada, atuando com um quê de felicidade ou neutralidade que parecem vir de uma comédia de Shakespeare, não de uma tragédia.
O destaque do elenco vai mesmo para Orson Welles no papel de Macbeth. A presença o ator-diretor é forte e dominadora e ele leva sozinho todo o filme nas costas, compondo um Macbeth amargo por excelência e cujo tormento da consciência o faz ficar cada vez mais monstruoso.
Filmado em apenas 23 dias e com alguns restos de cenário disponibilizados pela Republic Pictures, Macbeth é provavelmente o filme mais sério e menos rebuscado de Orson Welles. Em contrapartida, o que o diretor conseguiu fazer através da montagem e da direção coloca a obra na linha de suas mais altas realizações.
Infelizmente, ainda hoje, o filme é visto com agudo desprezo por uma parte da comunidade cinéfila. É o tipo de público que não sabe diferenciar o luxo supérfluo do essencial ou dar valor a uma obra cinematográfica pelo sentido e bom uso de seus elementos em tela, não pela beleza e glamour que eles possuem. Macbeth tem sim um caráter de “filme B”. Mas sua qualidade artística é tal que precisaria um alfabeto inteiro para classificá-la.
Macbeth (EUA, 1948)
Direção: Orson Welles
Roteiro: William Shakespeare
Elenco: Orson Welles, Jeanette Nolan, Dan O’Herlihy, Roddy McDowall, Edgar Barrier, Alan Napier, Erskine Sanford, John Dierkes, Keene Curtis, Peggy Webber
Duração: 92 min.