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Crítica | Má Sorte ou Pornô Acidental

Revelando a nudez da sociedade que esconde hipocrisia e moralismo

por Michel Gutwilen
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Por ser um filme que se divide narrativamente em três partes, que são basicamente como três filmes em um só (pelo menos estruturalmente), convém falar de Má Sorte ou Pornô Acidental também de maneira fragmentada. Desde o prólogo do sex tape até o acompanhamento da rotina da professora pela cidade, a primeira parte segue caminhos muito promissores. Primeiro, porque existe uma intenção de Radu Jude em provocar o olhar do espectador moralmente. Afinal, somos introduzidos à protagonista a partir de uma cena sua de sexo explícito, em seu estado de maior intimidade, para depois acompanharmos sua versão “pública” (a pessoa com trabalho normal e que anda pela cidade como qualquer outra). Ou seja, primeiramente ele nos choca com a frontalidade (e o caráter amador da filmagem ajuda nisso, pois nos traz para o mundo real), para depois normalizar nosso olhar. Afinal, essa protagonista é tão normal quanto qualquer outra de outro filme, com a diferença de que vimos ela fazendo algo que outras(os) personagens de outros universos também fazem, mas quase nunca nos é mostrado de maneira tão explícita. 

Neste sentido, é como se o filme transformasse o espectador em uma espécie de cúmplice. Nos é confidenciado o que a protagonista fez na cama, então acompanhamos sua trajetória de cidadã normal como se soubéssemos um segredo oculto seu. É também como se partilhássemos uma certa vergonha compartilhada com ela, pois sentimos o mesmo desconforto que ela sente diante dos possíveis olhares na rua e a cada vez que ela interage com algum estranho na rua, uma vez que existe a dúvida se os outros também sabem o que ela fez ou não. Além disso, é definitivamente um exercício provocativo que não está julgando apenas o olhar dos personagens de seu filme, mas também daqueles que assistem. Por isso, não surpreende (e deve ser esperado por Jude) que alguns espectadores, principalmente os mais conservadores, saiam da sala de cinema logo durante o prólogo de sexo explícito. Ora, isso só comprovaria que o mundo deste lado da tela não é diferente quanto o do outro lado e no fim das contas Má Sorte ou Pornô Acidental é deveras realista.

Igualmente, seria impossível falar desta parte da obra sem citar o leimotif recorrente de Radu Jude, que é o movimento da câmera que deixa de enquadrar a protagonista para passear pela cidade livremente, como se lhe esquecesse. O que parece ocorrer aqui é como se ele trabalhasse uma certa ressignificação do olhar da câmera: ela é primeiro o voyeur moralista que persegue como um papparazi a mulher que fez sexo, mas depois seu olhar se volta para os símbolos escondidos de uma cidade moderna e vai tentando dizer implicitamente que há coisas muito mais absurdas a serem mostradas, só que elas parecem normalizadas e invisíveis diante da nossa visão seletiva. 

Por isso, Jude se volta para certos símbolos como fachadas de lojas, propagandas capitalistas, logotipos americanos espalhados pelo mundo ou corpos nus masculinos em propaganda, além do vazio imobiliário deixado pelo COVID. Do mesmo modo, há uma inserção de cenas que envolvem encontros aleatórios e violentos pela cidade, desde uma briga na fila do supermercado até um acidente de trânsito. Como já indicava o subtítulo que precedia a parte um, trata-se de um movimento que visa mostrar que a sociedade, enquanto coletivo, está verdadeiramente doente e decadente. Há questões muito mais urgentes que necessitam ser enxergadas e debatidas antes de uma sex tape. Inclusive, no meio deste caos, a pessoa mais normal seria justamente aquela mulher que é julgada e estigmatizada por todos apenas por fazer sexo. Se o que acontece na narrativa é o “vazamento” de uma sex tape íntima de um indivíduo, o que faz a mise-en-scène é buscar um vazamento também dessas camadas ocultas do espaço urbano.

Ainda neste início, é curioso como se insere a questão da contextualização do COVID no  filme. Talvez este seja o primeiro caso que vejo de uma narrativa consciente de sua existência no contexto pandêmico do mundo, mas que em nenhum momento faz dele um holofote ou tema (direto ou reflexo). Trata-se apenas do mero estado histórico em que a narrativa se passa, mera “época”. Por este motivo, as máscaras estão o tempo todo em tela, mas ninguém fala sobre elas, elas são vistas como objetos normais e não alienígenas. Não há aqui um comentário “social” sobre a pandemia. Pelo contrário, pois é até bem curioso como as máscaras parecem adquirir uma espécie de dupla significação: elas servem tanto ao contexto de naturalismo do filme, que se passa no período do COVID, mas elas também ganham um papel narrativo dentro daquele universo específico que tem como a vergonha um de seus temas chave. Sendo a sua protagonista uma mulher julgada por todos os olhares (até o da câmera) que pairam sobre ela durante a sua trajetória, a máscara adquire esse caráter protetivo, de refúgio e de camuflagem à ela. Similarmente, em uma narrativa que busca revelar as máscaras moralistas da sociedade, a máscara literal também ganha esse duplo sentido metafórico de esconder o quão hipócrita são as pessoas por trás desses véus.

Contudo, é uma pena os caminhos que Má Sorte ou Pornô Acidental decida tomar na 2ª e na 3ª parte não sejam tão bem trabalhados quanto seu início, ainda que seja interessante pensar que o filme vai se reinventando formalmente a cada etapa, enquanto mantém um mesmo tema de interesse. Quanto à segunda parte, Jude busca fazer uma colagem de eventos reais do mundo moderno, principalmente da Romênia, em uma tentativa pretensiosa de atirar para todos os lados em uma radiografia do estado atual da sociedade. Porém, a impressão é que sua intenção está muito mais nos choques imagéticos (e de montagem) imediatos e menos em reflexões mais profundas que possam perdurar com o tempo. Evocar símbolos fálicos no militarismo, mostrar frontalmente órgãos genitais e contrastar com o conservadorismo religioso do mundo já não é nenhuma ideia nova.   Quanto à terceira parte, a farsa satírica através do tribunal moralista soa meramente expositiva e didática em sua abordagem frontal e direta, uma vez que não deixa muito espaço para a dialética do espectador, que deveria tirar seus próprios pensamentos do tema. Assim, é como se os personagens ali existissem assumidamente enquanto veículos para as opiniões do diretor e nada mais. São caminhos muito facilitadores para falar do quanto a sociedade é hipócrita e moralista no tratamento do sexo. Ao fim, Má Sorte ou Pornô Acidental praticamente deixa de se importar em ser um filme e se torna mero discurso moral.

Má Sorte ou Pornô Acidental (Babardeala cu bucluc sau porno balamuc, 2021) — Croácia, Luxemburgo, República Tcheca, Romênia, Suíça.
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude
Elenco: Katia Pascariu, Claudia Ieremia, Olimpia Malai, Nicodim Ungureanu, Alexandru Potocean, Andi Vasluianu, Oana Maria Zaharia, Gabriel Spahiu, Florin Petrescu
Duração: 106 mins.

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