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Crítica | Luzia (2021)

por Luiz Santiago
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Adaptar é sempre uma tarefa muito difícil, principalmente quando a adaptação é feita para uma mídia diferente da obra original. Existem nuances de tempo narrativo, texto, contexto e forma do texto que cobram dos artistas responsáveis uma grande sensibilidade, pois precisam manter a essência do original e, no bojo dessa essência, criar a sua própria faceta com cores, formas e nuances em relação à obra que adaptam. Nesta versão de Zé Wellington (roteiro) e Débora Santos (arte) para o livro Luzia-Homem, do escritor cearense Domingos Olímpio, temos uma boa oportunidade de ver essas boas qualidades de uma adaptação reunidas em um só lugar.

A história da Grade Seca que durou de 1877 a 1879 é narrada nessa aventura tendo Luzia como personagem de destaque, e a partir de suas desventuras e breves momentos de felicidade é que conhecemos a fome, a sede e a miséria que atingiu o Nordeste do Brasil naquele período. O recorte geográfico aqui é a cidade de Sobral, no Ceará, e já nas primeiras páginas temos bem definida a marca daquele terrível período de seca, com os desenhos de Débora Santos destacando a aridez do terreno e as diversas necessidades dos retirantes e moradores locais, trabalhando a pleno Sol durante a construção da nova penitenciária, no Morro do Curral do Açougue. São necessidades humanas que qualquer um bate o olho e consegue identificar dezenas de exemplos similares ainda em andamento no Brasil e em diversos lugares do mundo, uma das coisas que nos deixam ainda mais tristes quando lemos histórias que falam de mazelas sociais, pois alguns problemas parecem não abandonar uma determinada sociedade. Ou, quando acredita-se que foram superados, novas conjunturas desfazem os avanços e regridem toda a História de um país para muitas décadas no passado.

É pensando nessa relação de condições sociais, de injustiças, de corrupção no meio das forças policiais e de diversas motivações que tornam alguns seres humanos pessoas abjetas que conseguimos ver Luzia por uma ótima extremamente atual. No romance de Domingos Olímpio a gente tem esses elementos discutidos, mas por carregarem as características literárias do período em que foi escrito (o Naturalismo), às vezes o pensamento crítico é diluído em diversas outras considerações. Já na presente adaptação, Zé Wellington guia a narrativa pela existência diária de Luzia, Teresinha, Alexandre, Raulino, Dona Zefinha e outros personagens que dividiam a secura e os esforços daquele momento, mantendo o leitor o tempo inteiro preso àquela terra e àquelas pessoas, compartilhando as dores, alegrias e tragédias de todos. A protagonista ganha ares bem mais modernos de crônica de sobrevivência em meio a adversidades climáticas, econômicas e sociais, mais uma vez fechando o ciclo de proximidade com o status da massa brasileira em nosso tempo. Não tem jeito: o artista verdadeiramente reflete o seu tempo.

O que a parte crua, dura, realista do roteiro de Zé Wellington apresenta, a arte de Débora Santos tem a capacidade de contornar, sem descaracterizar. A questão é que em meio aos desenhos dos inúmeros dissabores sociais da Grande Seca, existe uma imensa delicadeza visual em seu trabalho. Impossível ficar indiferente à grandiosidade simpática da protagonista (ela é desenhada como uma bela Mulher-Hulk da vida real, com um porte que parece uma peça de granito viva); com seus cabelos fascinantes (nunca vi cabelos tão bem desenhados, tão vivos, tão verdadeiramente Personagens como os cabelos de Luzia nessa HQ) e com seu olhar doce e sofrido. Não há um único indivíduo aqui que não seja visualmente marcante.

Até o nojento do Crapiúna recebe uma bonita representação visual. Por não ser desenhado com “marcas vilanescas” na face ou no corpo — fico imensamente feliz quando artistas fogem desses clichês estéticos bobos e sem necessidade — a ideia do mal banal paira sobre toda a história, podendo ações horrendas, hediondas, ser cometidas com gente que “não tem cara de bandido criminoso“, e elas podem ser tanto a de manipulação da máquina pública/da justiça para benefício próprio (como faz Crapiúna e seus cúmplices),  quanto a ajuda que dão à divulgação desnecessária para as muitas mentiras que se inventam sobre os outros o todo o tempo (as fofoqueiras do bairro). O caluniado Alexandre que o diga. E por falar nele, devo dizer que se me apaixonei por esse homem lendo o livro, aqui, então, essa paixão aumentou ainda mais. Tanto o roteiro quanto os desenhos do quadrinho o representaram como um homem doce, assertivo nos momentos de necessidade, alguém que se coloca contra os “pequenos crimes visivelmente invisíveis do dia a dia” (o assédio de Crapiúna à adolescente Quinhotinha) e, além de tudo, um tímido romântico.

Luzia é uma adaptação ao mesmo tempo fiel à sua fonte e perfeitamente conectada com o tempo em que foi produzida. A edição traz um ótimo posfácio de Carmélia Aragão comentando algo com o que eu concordo bastante, dizendo que “Zé Wellington consegue se sobrepor ao amargo fatalismo do século XX“. Sim, Luzia é uma história triste, mas essa adaptação vem revestida de um outro tom. De um encaminhamento que não ignora os problemas em torno dos indivíduos (ao contrário, trabalha-os bem, ajudando-nos a fazer boas relações com o nosso mundo) mas há aqui uma guinada importantíssima para a mudança. Uma guinada para algo que infelizmente se perde em tempos de crise a longo prazo: a esperança. Para mim, foi uma escolha inesperada, mas absolutamente necessária, e que me fez terminar a leitura com os olhos marejados.

Em tempo: o glossário riquíssimo ao final do volume ajuda muito na nossa compreensão de muitos termos e conceitos explorados no livro e no roteiro. O leitor ainda tem duas páginas adicionais que são igualmente maravilhosas, uma contando um caso de Raulino sobre um burro velho (perfeita a escolha do autor em colocar essa história como extra e não no corpo da HQ, para não dispersar, como acontece no original) e outra com um mapa de Sobral, indicando os lugares onde as muitas partes da trama se passam.

Luzia (Brasil, 2021)
Roteiro: Zé Wellington
Arte e Capa: Débora Santos
Editora: Draco
96 páginas

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