Existem alguns mitos cinematográficos em torno da produção de Luz de Inverno, o segundo filme da Trilogia do Silêncio de Deus, iniciada com Através de um Espelho e finalizada com O Silêncio. O mais “grave” desses mitos, diz respeito ao diagnóstico que o médico da Svensk Filmindustri fez do ator Gunnar Björnstrand, colocando-o em alerta por conta de sérios problemas do coração e pressão, fazendo com que o artista passasse a maior parte das filmagens de Luz de Inverno em constante medo, perdendo até peso do início para o final das filmagens, uma situação também agravada pela gripe que o acometeu nesse período. Para piorar, as filmagens da obra se iniciaram com a chegada do frio, em outubro de 1961, um período raro de filmagens ao se tratar de um filme de Ingmar Bergman, já que a maioria de suas obras se passam durante o verão.
Ao procurar uma segunda opinião médica, Björnstrand ouviu um diagnóstico completamente diferente. Ele tinha apenas um resfriado, mas não sofria nenhum risco por problemas no coração e nem sua pressão estava em estado crítico. Isso bastou para que boatos sobre Bergman ter manipulado a fala do doutor da Svensk para Björnstrand se espalhassem, dando a entender que o cineasta, a fim de arrancar uma interpretação cada vez mais sofrida e realmente em estado de medo de seu amigo e parceiro de trabalho, fez com que ele acreditasse que sua vida estava em perigo. É importante destacar que o ator jamais falou sobre isso em público e nas entrevistas que deu ao longo dos anos (ele voltaria a trabalhar com Bergman muitas outras vezes, inclusive seu último papel na TV e no cinema foi em um filme e uma série de Bergman: Fanny & Alexander) e que em uma famosa entrevista à RAI italiana, o ator recusou categoricamente a colocação do entrevistador sobre os “maus tratos” de Bergman em relação aos seus atores, ou que ele “tratava a todos como robôs”. A fala do artista é bastante curiosa: “Eu diria que Bergman cria no estúdio uma atmosfera particular, segundo aquilo que deseja obter. Não é um analista. É um ator e um inspirador e faz isso de uma maneira excepcional. […] Ele é um mago, mas não nos transforma em robôs“.
O fato é que a interpretação de Gunnar Björnstrand em Luz de Inverno é algo de outro mundo. E reparem que havia um agravante, já que ele odiava o papel! Mas sua performance é de uma entrega sem gritos ou desespero aos quatro ventos. O sofrimento do pastor que ele interpreta faz com que as feições do ator se curvem ao peso da vida, dos conselhos que não consegue dar, do amor que não consegue partilhar, da rudeza ao tratar Märta (Ingrid Thulin, também em soberba interpretação) e da encruzilhada e crise de fé na qual se encontra ao constatar que “Deus está silencioso“. Aproveitando-se dessa honestidade e genuíno sofrimento do ator e personagem, Bergman e o fotógrafo Sven Nykvist fizeram diversos primeiros planos silenciosos ou durante as citações bíblicas. Essa proximidade visual com o personagem nos faz compreender seus tormentos, nos faz odiá-lo por infligir dor em outra pessoa para supostamente diminuir a sua própria dor, e nos faz aceitá-lo como um pastor que, acima de tudo, é humano. E como todo humano, deseja felicidade, liberdade e amor. Três das coisas que o roteiro, também escrito por Bergman, nega veementemente aos personagens.
Inspirado pela Sinfonia dos Salmos, de Stravinsky; por um relato ouvido por Bergman de um reverendo, sobre um homem que lhe foi pedir ajuda e depois acabou se suicidando; e por Diário de Um Pároco de Aldeia, Luz de Inverno se passa ao longo de 12 horas, começando e terminando com uma celebração pontuada por sentimentos diferentes do pastor Tomas Ericsson. Os primeiros dez minutos mostram os fieis recebendo o corpo e o sangue de Cristo, cantando hinos e partindo para suas casas. Cada um parece estar ali para se conectar com Deus (lembremos que a tradução do título original do filme, Nattvardsgästerna é Os Comungantes), mas não existe real disposição de ninguém para este contato simbólico. No mundo frio, de uma fotografia quase anti-natural de Sven Nykvist e de uma planificação bastante atípica para um filme de Bergman, a fé é exercida como uma ação mecânica, talvez por falta de algo ou por outros interesses, como os de Märta, que, apesar de ateia, vai ao altar para comungar. A simbologia da Santa Ceia para ela não é a conexão com Cristo, mas sim com Tomas, o homem que ela ama.
Cada plano em Luz de Inverno é uma mostra de sentimentos, deslocamento e tentativa de encontro do homem com o divino e com outras pessoas. Como a trilha sonora aparece apenas em função religiosa, ficamos entregues ao silêncio e aos sons do ambiente. Cada visita, diálogo e encontro traz, sem querer, questões muito profundas que nenhum dos personagens está disposto a admitir ou consegue entender. Aliás, o roteiro nos engana em relação ao aparato religioso. Deus, aqui, é visto como uma força cruel, de planos próprios e irresistíveis, para o qual todos se voltam em algum momento. A chave para compreendermos bem a intenção de Bergman vem em um lamento do pastor, na densa e profunda conversa que tem com Jonas Persson, o atormentado personagem de Max von Sydow. Ele se refere ao Deus-Aranha (isso já aparecera em Através de um Espelho!) e, desse ponto em diante, fica bastante fácil classificar a posição e os questionamentos dos indivíduos. Embora suas angústias possam ser geopolíticas (a bomba atômica, os chineses), amorosas ou teológicas, todos vivem como insetos, capturados pela teia do Deus-Aranha que força a cada um refletir sobre sua existência e a essência das coisas em torno.
Como a própria aranha também tece um véu de ilusões, encobrindo a realidade para os que mais querem vê-la, a busca é apenas uma desculpa para que os insetos se enrolem ainda mais nessa teia. Entre a possibilidade de esperança e a confiança que já perdeu a validade, surgem as condenações de uma “escolha livre” que de “livre” nunca teve nada. Notem a primeira cena em que o casal Persson visita o pastor. Quando o reverendo diz que “é preciso confiar em Deus“, Jonas — não deixem escapar o simbolismo bíblico deste nome! — fita com amargura seu interlocutor e a câmera fixa esse olhar por alguns segundos, fazendo com que o pastor se envergonhe, que sinta o seu argumento frágil demais para a dor que o homem à sua frente estava sentindo. Não se trata de alguém fora dos auspícios da igreja. Trata-se de uma ovelha do rebanho que parece ter sido abandonada, não tendo o Deus-Pastor a bondade de aliviar a dor daquela alma. Uma segunda conversa acontece, mas agora de uma maneira mais impessoal. Os dois homens sofrem, os dois admitem esse sofrimento, mas o caminho que ambos tomam em suas vidas daí em diante é bem diferente.
Bergman já havia quebrado, em grande estilo, todas as regras narrativas ao mostrar a leitura da carta pelo pastor, indo do papel ao rosto de Ingrid Thulin em um solilóquio de mártir. Ao contrário do que muita gente pensa, ela não tem relação com as “chagas de Cristo”, mas sim com as “chagas dos profetas”. Märta é tão massacrada pela vida quanto Jó. Coberta de feridas, mesmo não acreditando em Deus, faz as perguntas certas para as quais tem uma resposta muda: “Deus, por que me criaste tão eternamente insatisfeita? Tão amedrontada, tão amarga? Por que eu devo me dar conta do quão miserável eu sou? Por que eu devo sofrer tão infernalmente por minha insignificância? Se existe um propósito no meu sofrimento, então me diga, para que eu possa suportar a minha dor sem reclamar. Eu sou forte. Você me fez forte no corpo e na alma, mas nunca me deu uma tarefa digna da minha força. Me dê um sentido para a vida e eu serei sua serva obediente…“. Esta oração é ao mesmo tempo um desafio e uma súplica desesperada, talvez oportunista, interesseira ou apenas de arrependimento. Mesmo não tendo fé, Märta resolveu tentar um último recurso. Sua posição no presente nos diz muito do que foi aprendido e do que foi deixado de lado após esta tentativa.
O último grande diálogo do filme se dá com o pastor e o sacristão corcunda interpretado por Allan Edwall. A fotografia nos faz ver o personagem como um anjo torto que fala sobre dor, sofrimento (breve ou prolongado), aceitação de uma condição adversa e… sobre a pior de todas as sensações de alguém, a sensação de ser abandonado. O clamor de Jesus na cruz, para o Pai, é citado como o maior exemplo: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?“. Segundo a interpretação de Bergman, Jesus teve dúvida. O sofrimento de seu corpo foi breve (algumas horas, apenas, diferente de algumas pessoas que sofrem dores físicas a vida inteira) e suportável, diferente daquilo que realmente o fez sofrer. A sensação de que Deus, seu Pai, não estava lá.
Em Luz de Inverno, Bergman cria as condições para que os insetos se soltem da teia do Deus-Aranha e encontrem, talvez ainda dentro da religião, um lugar onde apenas Deus exista, e com ele, a liberdade, a esperança e a leveza que fará com que um culto seja celebrado mesmo sem uma real comunidade para assistir. Um novo começo. Um estágio onde as coisas são feitas por prazer e comunhão com o divino, não por uma obrigação ou medo de tormentos na Terra ou em outro plano. E não é à toa que o filme termina com o cântico dos Serafins, vistos pelo profeta Isaías em uma visão narrada no Capítulo 6 de seu livro. O capítulo que mostra a consagração dele como profeta. “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; a terra toda está cheia da sua glória“. Soltos da teia do Deus-Aranha, cada um pode escolher o melhor caminho para o corpo e para alma. O caminho dos comungantes atravessando a ponte de uma difusa luz de inverno. O que existe do outro lado… é um mistério.
Luz de Inverno (Nattvardsgästerna) — Suécia, 1963
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Gunnel Lindblom, Max von Sydow, Allan Edwall, Kolbjörn Knudsen, Olof Thunberg, Elsa Ebbesen, Eddie Axberg, Lars-Olof Andersson
Duração: 81 min.