Fui tomado por diversos sentimentos enquanto via o novo projeto ambicioso, mas interessante, do Anurag Basu. Teve minutos em que eu detestei, outros que achei genial, e ainda outros em que eu pensei que deveria ter alguns minutos a menos. Impossível de definir em um gênero, o enredo é também uma montanha-russa de acontecimentos, em que as peripécias são utilizadas uma atrás da outra. Enquanto você se emociona com uma cena, ou um plano bem dramático, o diretor já está pensando na ação seguinte, que sempre é o oposto do sentimento que ele suscitou na cena anterior. E aí você, que estava emocionadíssimo e apegado à história de algum personagem, muda a chave em segundos para um sentimento outro, que não o de empatia e emoção. Esse é Ludo (2020), mais um divertido e embaralhado filme bollywoodiano.
O enredo do filme depende unicamente da sua estrutura narrativa, pelo fato de que é uma antologia com 4 histórias e estas histórias se cruzam, todas elas, a um dado momento – algo muito parecido com o que fez Tarantino em Pulp Fiction (1994) e Iñárritu na sua trilogia do caos, com Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006).
Como próprio do efeito borboleta, em que um acontecimento reflete numa cadeia de outros acontecimentos ad infinitum, o longa aposta nessa ideia de que tudo está interligado num todo maior, e as coisas acontecem uma em função da outra. Não é possível traçar uma única linha e seguir de maneira linear os personagens e suas histórias, tampouco pensar um parágrafo com o clichê “A narrativa gira em torno de…” pois, apesar de serem quatro histórias, ocorre uma dentro da outra, e elas se atravessam, com uma centena de reviravoltas, o que torna inviável um resumo do filme. E nem existe uma intriga que seja central, já que um enredo necessita obrigatoriamente do outro, fazendo com que o efeito da teoria do caos funcione.
O filme se baseia no jogo de tabuleiro Ludo, e é como se os personagens fossem fantoches e agissem de acordo com o previsto no jogo, basta ver que as cores das roupas dos protagonistas que integram cada uma das 4 histórias são da mesma cor que os lugares no tabuleiro. “Ludo é vida e vida é Ludo”. É dentro desta noção que o diretor vai trabalhar a mise-en-scène, e por isso parece tão confuso, porque ele mexe com a disposição do enredo como se fossem peças que se cruzam, porque é necessário que se cruzem para atingirem seus objetivos finais. As peças são as vidas de Sattu Bhaiya (Pankaj Tripathi), Akash (Aditya Roy Kapur), Alu (Rajkummar Rao) e Bittu (Abhishek Bachchan).
Como é próprio do cinema de Bollywood, a trilha sonora é essencial, e é o ponto alto do longa, trazendo diferentes emoções. O diretor acerta em cheio casando enredo e música como função estilística. E dá certo. Não raramente você vai se ver emocionado nas cenas dramáticas do Bittu, que são lindas porque há a fusão de um tema muito delicado para ele, junto de uma trilha musical que expressa o que está se passando na cena. Os interlúdios são ótimos e merecem destaque.
O filme, que começa in media res – ou seja, a narrativa já começa do meio, para então voltar ao início -, expõe, primeiro, os acontecimentos da primeira metade, e depois ele retoma e vai tentando explicar como tudo chegou até ali. É nesta disposição que as histórias se cruzam. Essa técnica narrativa, chamada de retrospecção, é perigosa, pois se você falha em amarrar o arco em algum momento, já que a história não está sendo contada linearmente, tudo está perdido. Mas não é o caso aqui, visto que o filme entrelaça presente e passado de uma maneira redondinha.
Muito parecido com 3 Idiotas (Rajkumar Hirani, 2009), que é uma obra-prima da Bollywood contemporânea, o longa desenvolve bem as tramas e subtramas, conectando, de modo coeso, todos os encontros. Os cortes de câmera são extremamente criativos, e eles fazem a transição de uma cena para outra. De um tema para o outro.
Um filme bem humorado em diversos aspectos, como no aparecimento do fantoche do Akash, que conta piadas divertidíssimas, o longa não se prende em um gênero só. Ele faz um passeio intergênero e passa com muita facilidade da comédia para o drama, da ação para o romance, fazendo com que a gente não se acostume com uma estética única. De fato, é possível rir, chorar, se compadecer, ficar apreensivo e nervoso tudo em questão de minutos.
Um filme só de Bittu seria ótimo, já que ele tem o desenvolvimento dramático mais acirrado em relação aos outros. Um criminoso em busca de redenção, de ser outra pessoa, que perde a filha para o orfanato, e depois de sair da cadeia encontra sua esposa com outro, Bittu é um homem de coração gigantesco em busca da reconstrução da sua vida. Ele tem uma sensibilidade única e um olhar intenso diante da câmera, e é destaque dentro da narrativa.
Ludo trabalha como um baralho, misturando peças, cruzando outras tantas, combinando diferenças, e produzindo um efeito misto em quem assiste. É divertido, carismático, a fotografia é linda e o argumento é muito bem montado. O final é surpreendente, mas também já esperado – e essa é outro artifício utilizado: o diretor coloca pequenas pistas, pequenos indícios do que vai acontecer, e do que está acontecendo. São duas horas e meia que não se arrastam, mas você percebe que são duas horas e meia de filme. Uma experiência singular, Ludo é uma viagem antológica pelos gêneros cinematográficos, compensando uma tarde na frente da TV.
Ludo (Índia – 2020)
Direção: Anurag Basu
Roteiro: Anurag Basu, Samrat Chakraborty
Elenco: Abhishek Bachchan, Aditya Roy Kapur, Rajkummar Rao, Pankaj Tripathi, Fátima Sana Shaikh, Sanya Malhotra, Rohit Suresh Saraf, Pearle Maaney, Inayat Verma, Paritosh Tripathi, Asha Negi, Bhanu Uday, Shalini Vatsa, Saurabh Sharma, Geetanjali Mishra, Ishtiyak Khan
Duração: 150 min.