- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas das temporadas anteriores.
Lucifer é a melhor prova que eu posso trazer sobre os males de séries com mais de 10, 12 ou 13 episódios (objeto de minhas reclamações aqui). Claro que séries curtas com roteiros ruins não têm jeito, pois nada realmente funciona sem um bom roteiro, mas é muito mais comum encontrar problemas quando há a insistência na estrutura clássica de 20 a 24 episódios dos primórdios do boom de séries de TV aberta nos EUA.
Começando com 13 episódios, Joe Henderson fez de Lucifer uma série policial procedimental com tons cômicos e sobrenaturais da melhor maneira possível, mesmo que muitos torçam o nariz para ela considerando que se trata de uma adaptação de criação de Neil Gaiman em Sandman, logo em seguida desenvolvida em título próprio por Mike Carey. A estrutura enxuta não permitia espaço para muita enrolação e o charme natural de Tom Ellis no papel título, além da pegada brega/sofisticada da fotografia e cenografia tornaram fácil gostar do Diabo de férias em Los Angeles que passa a fazer par com a ex-atriz, agora detetive Chloe Decker (Lauren German) na investigação de crimes. Renovada, a série ganhou uma encomenda estendida já na segunda temporada, com 18 episódios, e a curva qualitativa começou um arco descendente.
A segunda renovação trouxe o apocalipse para a série, já que os 24 (que acabaram sendo 26) episódios propostos para a terceira temporada enrolaram demais a narrativa, fazendo com que a muleta do caso da semana passasse a ter peso demais nos roteiros, apagando às vezes por completo o lado sobrenatural, além de eles terem apagado o desenvolvimento do personagem-título, de forma que ele fosse “desacelerado”. Foi o que bastou para a série perder o já não tão grande público espectador que tinha e ser cancelada pela Fox. Eis que o Netflix, salvador de séries, entra um mês depois para garantir a distribuição de Lucifer (que é produção da Warner Bros. Television) em sua plataforma, desta vez com apenas 10 episódios.
E o que um regime não faz, não é mesmo? Com não só todo o elenco principal de volta, mas também toda a equipe técnica, inclusive o showrunner, o cliffhanger do final oficial (que é A Devil of My Word e não os episódios bônus lançados posteriormente) da terceira temporada é abordado de peito aberto na quarta, sem que haja qualquer tentativa de retroceder na grande revelação de para Chloe que Lucifer é mesmo o diabo, apesar de ele nunca ter mentido sobre isso, aliás um dos charmes da série. Com isso, Henderson e Ildy Modrovich mergulham mais a fundo na mitologia sobrenatural da série e trabalha fundamentalmente a forma como a detetive lida com essa informação.
Iniciando com um solo de “Creep”, do Radiohead, com Ellis ao piano que funciona como uma bela forma de elipse temporal quando descobrimos que, na verdade, são diversas performances dele ao longo de um mês em que Chloe está “de férias” para fugir de encará-lo, a temporada não demora para restabelecer a estrutura central de caso da semana, com a detetive de volta não muitos minutos depois. Mas, assim como no início da série, essa estrutura é realmente apenas a base narrativa, o trampolim para que os dilemas psicológicos e morais sejam realmente abordados. Chloe volta, mas sua aparente normalidade é uma máscara que esconde seu pavor e um plano para mandar Lúcifer de volta ao inferno, algo influenciado por um padre fanático (Graham McTavish, excelente em suas participações especiais) que ela conhece em Roma. Além disso, logo percebemos que tanto Dan (Kevin Alejandro) quanto Ella (Aimee Garcia) lidam com a perda de Charlotte, com o primeiro culpando Lúcifer e a segunda perdendo a fé e Amenadiel (D.B. Woodside) e Linda (Rachael Harris) precisam encarar a inusitada gravidez da psicóloga, que espera um meio-anjo.
Se isso já não fosse material suficiente para a temporada, Henderson e Modrovich ainda introduzem Eva (sim, a Eva, aquela feita a partir da costela de Adão), vivida de maneira inteligentemente sexy por Inbar Lavi. Com ela no mix, vinda do Paraíso para viver a vida com Lúcifer, seu primeiro amor, a história realmente engrena e os roteiros trazem uma espécie de inversão da lógica do Pecado Original, com Eva encantando o Diabo e não o contrário. Além disso, há espaço para um boa discussão sobre fé e religião, e tudo o que gravita ao redor dessas questões, sem perder de vista a abordagem do peso da culpa e a importância da auto-descoberta.
De certa forma, porém, as linhas narrativas andam mais em paralelo do que tangenciam. O triângulo amoroso formado por Lúcifer, Eva e Chloe e a gravidez de Linda, com Amenadiel tentando entender o que é ser pai, pouco conversam e, por vezes, isso é frustrante, já que os “lados” dessa mesma moeda sequer se referenciam com a frequência natural que seria esperada. Por outro lado, isso permite que haja um ótimo desenvolvimento dos personagens que frequentam – por assim dizer – cada uma das duas narrativas principais, até que, bem lá no final, quando Los Angeles é invadida por outros demônios, a necessária convergência finalmente ocorra. Foi uma escolha consciente dos showrunners procederem dessa forma, mas o estilo “ou um ou outro” não parece orgânico em boa parte das vezes, ainda que o resultado, no agregado, seja muito positivo.
Outro problema da temporada é a falta de ousadia em se livrar da matriz estrutural da série ou pelo menos em minimizá-la. Os casos da semana, apesar de mais “mudos” do que na temporada anterior, continuam a ocupar um espaço desproporcional em relação ao que verdadeiramente interessa, por vezes interrompendo artificialmente revelações e conversas. Talvez eu esteja sendo injusto em esperar uma mudança tão radical, já que a tonalidade da série passou a ser mais sombria, mas sem perder a comicidade e o charme, mas creio que a velha maneira de se fazer séries se faz por demais presente aqui, com os casos “conversando” com a questão pessoal sendo abordada no episódio, bem naquele estilo anos 80 de ser. Só para o leitor ter uma ideia, dos 10 episódios da temporada, nove lidam diretamente com casos da semana, sendo que apenas um deles tem consequências para além do próprio episódio onde ele é enfocado. A série teria se beneficiado de uma quebra maior ainda de paradigma se tivesse tornado essas histórias meros adendos às tramas principais e não o contrário.
Seja como for, o mergulho no sobrenatural e na expansão desse universo é mais do que bem-vindo, incluindo o necessário uso maior de CGI e um bom trabalho de maquiagem e próteses para Lúcifer em sua versão demoníaca. O que quase não existia nas temporadas anteriores, está presente de sobra aqui, mas sem transformar a série em um festival de luzes e cores desnecessariamente. É o uso cirúrgico e também econômico – mas não tanto – de fogos de artifício para realmente trazer aquele lado divino que tanto faltava à série, mas sem que ela perdesse seu charme, sofisticação e aqueles hilários diálogos de duplo entendimento.
Provando que menos pode ser mais e fechando a temporada com o que pode ao mesmo tempo ser um cliffhanger e um encerramento definitivo, Joe Henderson Ildy Modrovich e o Netflix mostram, finalmente, o verdadeiro potencial da série originalmente desenvolvida por Tom Kapinos. Agora é torcer para que a renovação venha. Mas com o mesmo número de episódios!
Lucifer – 4ª Temporada (Lucifer, EUA – 8 de maio de 2019)
Desenvolvimento: Tom Kapinos (baseado em personagem criado por Neil Gaiman, Sam Keith e Mike Dringenberg)
Showrunner: Joe Henderson e Ildy Modrovich
Direção: Sherwin Shilati, Sam Hill, Jessika Borsiczky, Viet Nguyen, Louis Milito, Richard Speight Jr., Claudia Yarmy, Lisa Demaine, Eagle Egilsson
Roteiro: Joe Henderson, Ildy Modrovich, Jason Ning, Chris Rafferty, Mike Costa, Aiyana White, Jen Graham Imada
Elenco principal: Tom Ellis, Lauren German, Kevin Alejandro, D.B. Woodside, Lesley-Ann Brandt, Scarlett Estevez, Rachael Harris, Aimee Garcia, Inbar Lavi
Duração: 498 min. (10 episódios no total)