- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série.
A History of Violence, mesmo com todas as suas esperadas bizarrices, é, sem dúvida alguma, o mais “normal” dos episódios da temporada até agora, funcionando muito claramente da maneira clássica, ou seja, dividindo a história em duas narrativas separadas e estabelecendo mais direta e amplamente a extensão da mitologia que Misha Green tem à disposição para trabalhar. É quase como uma pausa para o espectador reorganizar o raciocínio e respirar um pouco e para a showrunner fazer as conexões necessárias e estabelecer a importância de Christina Braithwhite como a marionetista de todos os eventos principais em sua busca pelo poder.
A história principal reverte ao tema de viagem de carro como vimos em Sundown, mas, no lugar de focar no trajeto, o roteiro mergulha direto e descaradamente em uma aventura à la Indiana Jones (ou Viagem ao Centro da Terra como é mencionado) com direito a templo embaixo de museu, ponte que desaparece, armadilha, quebra-cabeças para abrir uma porta e uma macabra prisão com corpos mumificados de nativos americanos e uma feiticeira/sereia (Yahima, vivida por Monique Candelaria) que ganha vida com a presença de Tic e seu sangue mágico. Ou seja, nada mais do que uma terça-feira no cotidiano dos personagens… A dinâmica, claro, é alterada com a presença constante de Monstrose, claramente ainda sofrendo pelo seu cativeiro, pela perda do irmão e por todo o peso que tem que viver como negro e homossexual, algo que o texto insere nos diálogos de maneira muito inteligente e discreta e que adiciona mais dimensão ao personagem. O que destoa é o malabarismo que o roteiro faz para inserir Tree no grupo somente para ele dizer que Montrose está ficando “mais próximo” de Sammy e, ato contínuo, fazer o personagem desaparecer como em um passe de mágica.
Montrose e Tic têm praticamente o mesmo gênio. São esquentados e teimosos e só funcionam na base do solavanco e do grito. Aquela harmonia que existi quando o tio George era um dos vértices desse triângulo não existe aqui, o que torna a presença de Leti – também esquentada, mas muito mais centrada – ainda mais importante, ainda que, aqui, o destaque que ela ganhou em Holy Ghost não se repita, havendo uma distribuição mais equânime entre a trinca. A caça pelas páginas perdidas de Titus é uma diversão só, mas a loucura toda é mais comedida ou, talvez, corrida demais, quase como se o episódio tivesse pressa de chegar a seu fim. Os desafios e armadilhas, muito diferente da casa mal-assombrada do episódio anterior, soaram mais protocolares, sem o mesmo tipo de inventividade de antes, algo que, admito, pode ser em parte culpa de minha própria expectativa em ver Misha Green sempre ultrapassar o que veio antes. No entanto, temos que admitir que a showrunner nos condicionou a esperar por isso e mesmo a sequência bizarra em que Yahima revive e revela-se – de maneira bem revelada – que tem dois sexos e que foi horrivelmente usada por Titus em seu projeto de dominação mundial não parece mais estranho o suficiente.
Enquanto Leti, Tic e Montrose caçam o tesouro no templo subterrâneo em Boston, vemos Ruby frustrar-se em sua procura por emprego e ter esse seu sentimento de derrota, de alijamento social e de puro ódio pelo racismo que a cerca ser manipulado por William em algum plano ainda não revelado que também envolve Christina de alguma maneira. Essas sequências têm o bônus de abrir o devido espaço para Wunmi Mosaku brilhar sozinha, sem ser ofuscada pela presença mastigadora de cenário de Jurnee Smollett, além de fazer o que mencionei logo no início da crítica, ou seja, expandir o cardápio de possibilidades narrativas da temporada.
E o mesmo acontece com a própria presença pontual de Christina no episódio, seja visitando Leti para tentar recuperar o planetário de Hiram Epstein de maneira que, com uma cajadada só, descubramos que a casa continua protegida de brancos mágicos com o vodu anterior e que o brilhante objeto astronômico está na posse de Hippolyta que, vale lembrar, ao final resolve arregaçar as mangas e investigar sozinha o que aconteceu de verdade com o marido, carregando Dee a tira-colo. Além disso, a interação da feiticeira com o chefe de polícia estabelece de vez aquela sensação de uma enorme conspiração tendo a sociedade secreta originada em Titus no epicentro (são 34 hospedarias, afinal!) e Christina como uma agente rebelde e manipuladora que age nos bastidores – mas cada vez menos – para alcançar seus próprios objetivos que parecem envolver até mesmo uma máquina do tempo (e, se vocês me imaginaram com um sorriso bem grande estampado no rosto agora, estão absolutamente certos!).
A History of Violence não é o típico episódio de série de TV, mas também não é o típico episódio de Lovecraft Country, ainda que eu não esteja ainda muito certo sobre o que seja um episódio típico da série. Há um aspecto funcional importante nele que tenta dar algum tipo de sentido e dimensão à loucura que vimos antes, mas isso cobra um pouco seu preço ao domar a ação e retirar um pouco do que a série mostrou ser capaz de fazer de maneira tão eficiente e refrescante. Mas não se enganem: ainda é televisão de primeira, apenas talvez tenha que ter sacrificado o que tornava a série completamente diferente de tudo o que já foi feito para estabelecer um norte.
Lovecraft Country – 1X04: A History of Violence (EUA, 06 de setembro de 2020)
Showrunner: Misha Green (baseado em romance de Matt Ruff)
Direção: Victoria Mahoney
Roteiro: Misha Green (baseado em história de Wes Taylor)
Elenco: Jurnee Smollett, Jonathan Majors, Michael K. Williams, Aunjanue Ellis, Abbey Lee, Jada Harris, Wunmi Mosaku, Deron J. Powell, Monique Candelaria
Disponibilidade no Brasil: HBO
Duração: 60 min.