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Crítica | Lovecraft Country – 1X01: Sundown

por Ritter Fan
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  • Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série.

Pode vir como um choque para muita gente, mas H.P. Lovecraft, venerado como autor de contos e novelas de horror, tendo basicamente criando um subgênero que gira ao redor do Mito de Cthulhu, era inegável e inafastavelmente xenófobo e racista. Seja por seus claros comentários em diversas de suas obras sobre a “raça superior”, seja por testemunhos de sua esposa Sonia Greene, seja pelo poema On the Creation of Niggers que equipara os negros a semi-bestas que “preenchem o vazio” entre as bestas e os homens, seu terrível posicionamento sobre a questão está presente para quem quiser ver.

Matt Ruff usou esse passado vergonhoso de um grande escritor como ponte para criar seu romance Lovecraft Country, dividido em oito contos, que ganha, agora, adaptação em forma de série pela HBO, tendo Jordan Peele como um de seus produtores e Misha Green como showrunner e que, por sua temática, certamente atrairá comparações com a recente Watchmen. Mas, a julgar pelo primeiro episódio, Sundown, que goza de um timing perfeito em virtude do aquecimento das questões raciais nos EUA, tem o preconceito não apenas como objeto de crítica, mas como começo, meio e fim para a história, em uma bem-vinda narrativa que transforma o terror lovecraftiano – explicitamente abordado, vale dizer – naquilo que é o elemento menos assustador.

Quando o clímax do episódio chega em meio a uma floresta em Devon County, o espectador está já combalido por tudo o que veio antes, começando pela viagem de ônibus de volta de Atticus Freeman (Jonathan Majors), veterano da Guerra da Coréia, para Chicago, em que um problema mecânico o deixa a pé carregando as mala dele e de uma senhora igualmente negra, já que o transporte alternativo não os aceita pela cor da pele, passando por seu tio George (Courtney B. Vance) cuja profissão é escrever uma versão do Livro Verde – ou Green Book – guia de viagem para negros na América das Leis Jim Crow de segregação racial cuja existência muitos só descobriram com o filme homônimo e culminando com uma road trip que os dois e mais Letitia “Leti” Lewis (Jurnee Smollett), uma ativista e amiga de infância de Atticus, empreendem por razões diferentes.

Enquanto George deseja atualizar seu guia, Leti quer visitar seu irmão para pedir dinheiro e Atticus almeja descobrir o paradeiro de seu pai, Montrose (Michael K. Williams que, por enquanto, só aparece em fotos), que enviara uma misteriosa carta para ele informando que descobrira informações sobre o passado de sua esposa na cidade de Ardham, no local do título, convencionalmente conhecido como a Nova Inglaterra, na região nordeste dos EUA, região usualmente usada por Lovecraft como o local de suas obras. A premissa é simples aqui neste primeiro episódio, com a tensão ficando por conta da forma como o horror do preconceito racial se materializa em dois momentos de levantar o cabelo da nuca graças à direção de Yann Demange – a sequência que inspira o título é particularmente tensa -, mas sendo bem menos eficiente no mencionado clímax quando o horror do homem contra o homem é substituído pelo de monstro contra o homem.

No entanto, julgo que, diante do legado literário pulp que o episódio deixa explícito desde seu início, essa escolha explícita ao final é perfeitamente justificada. Não parece ser intenção de Misha esconder os segredos monstruosos, até porque a verdadeira monstruosidade está na “vida normal” da época que ecoa até os dias de hoje, mas sim lidar com o que parece ser o legado de Atticus – ou melhor, de sua mãe, pelo que parece – em Ardham.

Mas revelando ainda mais seu timing perfeito, Sundown fala da “cultura do cancelamento” que meu colega Luiz Santiago já teve oportunidade de abordar em sua Trilogia do Cancelamento. Entre citações a Uma Princesa de Marte que tem como herói um confederado e, claro, ao próprio Lovecraft e seu famigerado poema sobre “a criação dos negros” – com O Conde de Monte Cristo, do autor francês Alexandre Dumas, neto de escrava, ficando claramente fechado na cama de Atticus -, percebe-se a clareza de raciocínio tanto do protagonista quanto de seu tio George, dois leitores inveterados. Eles sabem dos males, reconhecem o contexto, entendem a origem, mas apreciam as obras. Sim, é um confederado, mas esse elemento parece empalidecer diante da promessa de aventuras na cabeça sonhadora – mas também cheia de pesadelos – de Atticus e sim, Lovecraft era nojento, mas o que ele criou não tem paralelo até hoje na literatura fantástica. O problema mais grave – como fica nas entrelinhas – talvez seja apagar o passado com se ele nunca tivesse acontecido ou ler ou ver ou de outra forma consumir algo sem entender ou procurar entender o contexto.

Lovecraft Country, apesar de talvez exagerar no final de seu capítulo inaugural, já começa acelerando, sem dar tempo para descanso e já desafiando o espectador. Será muito interessante ver aonde é que essa jornada pelo horror da segregação racial nos levará.

Lovecraft Country – 1X01: Sundown (EUA, 16 de agosto de 2020)
Showrunner: Misha Green (baseado em romance de Matt Ruff)
Direção: Yann Demange
Roteiro: Misha Green
Elenco: Jurnee Smollett, Jonathan Majors, Courtney B. Vance, Michael K. Williams, Aunjanue Ellis, Abbey Lee, Jada Harris, Wunmi Mosaku, Michael Kenneth Williams
Disponibilidade no Brasil: HBO
Duração: 70 min.

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