Paul Verhoeven definitivamente não brinca em serviço. Ele começou sua carreira no audiovisual como a grande maioria dos cineastas, criando diversos curtas, e isso o levou à TV, onde teve a oportunidade de colocar na telinha holandesa a aventura histórica Floris, que revelou o ator Rutger Hauer no papel-título e que angariou grande sucesso local. Em seguida, ele fez um documentário também para a televisão e, sem perder tempo, partiu para o cinema em 1971, com a comédia Negócio é Negócio, talvez sua obra menos característica, mas que faz todo sentido considerando que ela marcou sua entrada talvez ainda cambaleante – mas de forma alguma ruim – em uma outra liga.
Mas tudo isso foi mera preparação, pois, em 1973, o diretor colocaria Louca Paixão nas telas de seu país, filme que não só até hoje é uma das obras nacionais da Holanda mais assistidas no país (alguns dizem que ela é a mais assistida), como foi o segundo longa a representar o país no Oscar, na categoria que hoje é a de Melhor Filme Estrangeiro, perdendo, com justiça, para A Noite Americana. Nada mal para apenas o segundo filme na carreira de qualquer cineasta, não é mesmo?
Louca Paixão conta a história de Eric Vonk (Hauer em seu primeiro papel no cinema), talentoso escultor um pouco mais velho que se apaixona enlouquecidamente (sim, o título nacional pode parecer óbvio, mas é preciso) pela jovem menor de idade Olga Stapels (Monique van de Ven também em seu primeiro papel) depois que os dois se conhecem no meio da estrada em um primeiro encontro mais do que desastroso, em medias iguais cômico e angustiante. Entre numerosas sequências bastante explícitas de sexo – algumas delas, desconfio, inspiradas no marcante e importantíssimo Eu Sou Curiosa – Amarelo – reticências da mãe de Olga (Tonny Huurdeman) que logo vão embora com a simpatia do pai (Wim van den Brink) e um pedido em casamento e o que decorre daí, Verhoeven pinta um retrato fascinante e realista de um casal inseparável, sem aquele verniz puramente romântico e idealizado de, por exemplo, Love Story, de três anos antes, ainda que em termos de premissa e construção as duas obras sejam muito parecidas.
O longa conta também com o artifício de enquadramento, que coloca a ação principal ao longo de dois anos dentro da moldura de um preâmbulo e um final no presente, em que vemos Eric aturdido, sem rumo, entregando-se ao sexo casual com qualquer mulher em que esbarrar, o que logo passa a mensagem ao espectador sobre a história ser também sobre a dor da perda, da distância e do que talvez possa até mesmo ser classificado como alguma patologia amorosa da qual o protagonista não consegue se desvencilhar. Mas o que interessa é a forma como Verhoeven lida com o desenvolvimento da conexão entre Eric e Olga, com uma abordagem naturalista que faz da explicitude do sexo e de um grau razoável – e obviamente incômodo – de escatologia e diálogos de imagens talvez vívidas demais, se é que isso existe, algo do cotidiano desses dois jovens aproveitando sua relação ao máximo, com Eric muito claramente pendendo para o vício em sexo que impede profundidade entre eles.
Apesar de o longa ter um fim em si mesmo, ou seja, ele circula ao redor de uma história que se basta e que não exatamente leva a discussões que vão além de seu âmbito razoavelmente restrito, é fascinante notar a capacidade do quase estreante Verhoeven e dos estreantes Hauer e Van de Ven em enredar o espectador quase que instantaneamente, transformando o périplo de Eric e Olga em algo que simplesmente não conseguimos abandonar. É, sem dúvida alguma, um testamento da força de um longa-metragem cru, sem arestas aparadas e que extrai da dupla protagonista algo que muito raramente vemos em tela: uma genuína conexão emocional e carnal entre os personagens.
Mas Verhoeven sendo quem é, ele não deixa a coisa barata e seu objetivo é mesmo incomodar. Além da já citada explicitude sexual masculina e feminina (a primeira tomada de Hauer na cama é um nu frontal) e da escatologia nos mais variados níveis, o roteiro de Gerard Soeteman (em seu segundo longa – de vários – com o diretor, depois que os dois trabalharam juntos na TV em Floris) chega a ultrapassar uma barreira complicada, levando Eric a tecnicamente estuprar Olga, um estupro marital, para ser mais exato. Não é algo como em …E o Vento Levou, sutil, off-camera e com um raiar do dia seguinte com Scarlett sorrindo de felicidade. Longe disso, na verdade. Seguindo a “regra” do filme, vemos a coisa acontecer em razoável detalhe e, como nem o diretor, nem o roteirista cria consequências para Eric, resta ao espectador absorver o momento da forma que melhor lhe aprouver. Pessoalmente, acho que a cena, apesar de ser justificável – no sentido de manter a lógica narrativa – diante do momento do filme e da obsessão descontrolada de Eric, vai além do que era necessário que fosse e, mesmo que o longa, no geral, acabe fazendo com que esse momento se encaixe no desenvolvimento do casal, diria que a sequência não tem o condão de alterar a história, pelo que poderia ter sido excluída para evitar o “choque pelo choque”.
Mesmo considerando esse nada irrelevante “porém”, Louca Paixão continua sendo um filme hipnotizante e muito bem construído, com atuações centrais de se tirar o chapéu e um trabalho de direção cuidadoso em seu caos. Verhoeven mostra, aqui, toda a sua capacidade de envolver, ao mesmo tempo de afastar o espectador, sempre mantendo-nos alertas e sempre desafiando-nos. Como quase tudo em sua carreira, seu segundo longa cinematográfico não é uma obra fácil de ver e muito menos de se apreciar, mas é aí que está o valor de um grande diretor, não é mesmo?
Louca Paixão (Turks Fruit – Holanda, 1973)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Gerard Soeteman (baseado em romance de Jan Wolkers)
Elenco: Monique van de Ven, Rutger Hauer, Tonny Huurdeman, Wim van den Brink, Hans Boskamp, Dolf de Vries, Manfred de Graaf, Dick Scheffer, Marjol Flore, Bert Dijkstra
Duração: 108 min.