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Crítica | Lolita (1997)

Assunto difícil, entrega belíssima.

por Ritter Fan
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Penúltimo filme dirigido pelo britânico Adrian Lyne antes de seu hiato de nada menos do que 20 anos quebrado apenas por Águas Profundas, em 2022, Lolita foi seu maior fracasso financeiro, mesmo considerando que ele veio em seguida a Proposta Indecente, de quatro anos antes, e um de seus maiores sucessos. No entanto, isso não deveria ser uma surpresa, já que o longa de 1997 tinha duas barreiras muito difíceis de serem transpostas, a primeira, claro, sendo a difícil, ousada e, no final das contas, asquerosa matéria-prima desenvolvida no famoso romance homônimo que Vladimir Nabokov publicou em 1955 e a segunda as inevitáveis comparações com a primeira adaptação cinematográfica do livro por ninguém menos do que o grande e inimitável Stanley Kubrick, em 1962.

Na verdade, havia três barreiras e a terceira era o próprio Adrian Lyne e o tipo de reputação que ele acabou construindo para si com sua filmografia, em que o erotismo reina mesmo que essa seja a camada mais superficial de todo seu trabalho. Afinal, uma vez rotulado assim ou assado por críticos e público ávidos por esse tipo de abordagem rasa, é muito difícil escapar das expectativas geradas e Lolita, por Lyne, claro, tinha tudo para ser um quente romance erótico em que um homem de meia idade se apaixona por uma ninfeta de 14 anos. Como Lyne nunca fez filmes de teor erótico apenas pelo erotismo, isso não mudaria aqui. Muito ao contrário, a história altamente incendiária de Nabokov ganha um tratamento solene, de época, lindamente fotografado e com atuações da dupla principal que, diria sem medo de errar, rivalizam e talvez ultrapassem as de James Mason e Sue Lyon no longa sessentista, o que provavelmente desapontou muita gente.

Como as comparações são inevitáveis mesmo, vamos a elas. Lyne não faz um remake de Kubrick para começo de conversa. Isso seria um sacrilégio cinematográfico e ele sabia disso. O roteiro que o jornalista Stephen Schiff escreveu em sua estreia na Sétima Arte volta à prancheta original e é uma nova adaptação do romance de Nabokov, uma em que o aspecto… “romântico” da relação entre o professor de literatura Humbert Humbert (Jeremy Irons) e a jovem Dolores “Lolita” Haze (Dominique Swain) é salientado, com o humor ácido da narrativa original, que Kubrick adotou, sendo completamente abafado. Além disso, Lyne, sem a censura prévia que Kubrick enfrentou e que o desagradou muito na época, vale lembrar, teve mais espaço para trabalhar sequências mais explícitas, mas, vale destacar, mantendo sua elegância usual em cenas assim. Afinal, diferente do que talvez o imaginário popular tenha erroneamente fixado com base em imagens repetidas ad nauseam por todo o lugar, Lyne nunca foi vulgar, nunca foi verdadeiramente explícito. Muito ao contrário, o cineasta sempre abordou o ato de fazer sexo com extremo bom gosto e muita técnica.

Mas é mais do que evidente que a abordagem de Lyne torna-se automaticamente muito mais arriscada quando falamos de um assunto tão espinhoso quanto a pedofilia, pois, sem dourar a pílula, é esse o pano de fundo de Lolita, seja o livro, seja o filme de Kubrick, seja a versão noventista. Irons tinha 49 anos na época, enquanto a estreante Swain era ainda uma adolescente de 17 fazendo-se passar por uma personagem de 14 anos (a idade que Kubrick usou foi repetida aqui, já que, no romance, a jovem tem 12) e a diferença de 32 anos entre os atores é um abismo intransponível sob qualquer aspecto quando uma das partes é tão jovem assim, mais ainda na ficção, claro. Lyne sabia disso e, exatamente por ele ter consciência da questão é que o que vemos ser visualmente contemplado no longa vai em um crescendo vagaroso, por vezes vagaroso demais, admito, com o diretor primeiro testando o terreno, para somente bem mais para a frente lidar com a conexão carnal entre os personagens e, mesmo assim, de maneira consideravelmente discreta, com o uso da bela trilha sonora composta por Ennio Morricone pontuando, simultaneamente, o romance e a perversão daquilo que vemos.

Irons e Swain estão formidáveis aqui. Chega a ser difícil acreditar que a atriz era praticamente estreante na época (seu único trabalho anterior foi uma ponta em A Outra Face e ela, infelizmente, jamais teve outras oportunidades desse porte) tamanha é sua entrega e sua capacidade de metamorfosear entre uma criança inocente de 14 anos e uma jovem precocemente madura de 14 anos com uma literal mudança facial ou um gesto, quase como Christopher Reeve transitando entre Clark Kent e Superman nos filmes de Richard Donner. Irons, por seu turno, desenvolve seu Humbert Humbert com tamanha fragilidade emocional que por vezes até esquecemos de que o que ele faz é absolutamente hediondo e imperdoável. O momento em que ele vê Lolita pela primeira vez no jardim da casa de Charlotte Haze (Melanie Griffith em um papel muitas vezes subestimado, mas que considero melhor do que o de Shelley Winters como a mesma personagem), sua casca sisuda é desmanchada imediatamente e é fascinante – e repugnante – ver essa transformação diante das câmeras que continua em um crescendo que o leva à obsessão, violência e loucura.

Aliás, as acusações usuais de que Lolita é uma obra imoral em qualquer de suas encarnações revela a incompreensão do básico ou o simples fato de que quem afirma isso não leu o romance ou viu os filmes. Assim como as obras de Nabokov e Kubrick, o filme de Lyne muito claramente condena o que Humbert Humbert faz, sem relativizações, sem empurrar parte da “culpa” para Lolita mesmo considerando suas manipulações. Aliás, ao extirpar o longa do subtexto de humor ácido que Kubrick imprimiu, inclusive dando enorme destaque a Peter Sellers e seu camaleônico e asquerosamente cômico Clare Quilty, Lyne imprime um tom ainda mais cáustico que leva à destruição mútua de todos os personagens. Seu Quilty, vivido por um Frank Langella sempre nas sombras, ganha contornos de assombração e estabelece uma bem-vinda, ainda que leve, camada de thriller ao longa que influencia fortemente na espiral de paranoia de Humbert, com um embate final entre os dois que tem belos contornos surrealistas.

A versão de Lolita por Adrian Lyne é um filme criminosamente subestimado e esquecido que, sem dúvida alguma, não merecia o abissal destino financeiro que acabou tendo. Mais do que isso, ele merece ser redescoberto e reapreciado em retrospecto. Sem dúvida é uma obra difícil e desagradável em razão da matéria que aborda, mas, ao mesmo tempo, é um impressionante sinal de maturidade de um diretor que, infelizmente, sempre sofreu – e ainda sofre – pelos rótulos irremovíveis com que um dia decidiram marcá-lo.

Lolita (Idem – EUA/França, 1997)
Direção: Adrian Lyne
Roteiro: Stephen Schiff (baseado em romance de Vladimir Nabokov)
Elenco: Jeremy Irons, Ben Silverstone, Dominique Swain, Frank Langella, Melanie Griffith, Suzanne Shepherd, Keith Reddin, Erin J. Dean, Joan Glover, Ed Grady, Michael Goodwin, Angela Paton, Emma Griffiths-Malin, Ronald Pickup, Michael Culkin, Annabelle Apsion
Duração: 137 min.

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