- Há leves spoilers.
Logan é um dos raros – bem raros – filmes de super-herói que transcende o gênero mais espalhafatoso e menos cerebral a que normalmente estão adstritos e consegue contar um drama relevante que tem personagens superpoderosos e não o contrário. Hugh Jackman e Patrick Stewart retornam para o que, à época, seria a última vez em que os dois encarnariam seus célebres personagens Wolverine e Professor Charles Xavier para contar uma história de esperança em meio ao desespero, de expiação de pecados e de vislumbre de um futuro melhor que inteligentemente se vale do artificio conhecido como in media res, ou seja, começando com a história já iniciada e, com isso, evitando ao máximo possível textos expositivos, para avançar um pouco para um futuro em que mutantes não nascem há mais de duas décadas e que os mutantes sobreviventes, notadamente, claro, a dupla inicialmente protagonista, vem aos poucos perdendo seus poderes.
Nesse futuro – 2029 para ser exato – Wolverine não é mais Wolverine, mas sim apenas Logan (Jackman), um motorista de limosine de barba esbranquiçada que junta dinheiro para comprar um barco de forma que ele possa levar o Professor X, que sofre de demência e que ele esconde no México dentro de uma caixa d’água tombada com a ajuda de Caliban (Stephen Merchant), mutante albino que queima ao sol e que tem habilidade de localizar outros portadores do gene X, para um lugar seguro no meio do oceano. Também nesse futuro, os X-Men não mais existem, com vários deles tendo sido mortos em uma tragédia em Westchester causada, ao que tudo indica, pela manifestação descontrolada dos poderes de Xavier em razão de sua doença degenerativa. O roteiro que o diretor James Mangold escreveu ao lado de Michael Green e Scott Frank (no mundo dos super-heróis, o primeiro foi corroterista de Lanterna Verde e o segundo de Wolverine: Imortal, ambos filmes muito ruins, por sinal), bebe, em linhas gerais, da premissa do bem-sucedido arco dos quadrinhos O Velho Logan, por Mark Millar e Steve McNiven, publicado em 2008, mas trazendo a história para algo mais terreno, realista e verossimilhante, além de consideravelmente mais intimista e pesado e construindo o contexto depressivo e até niilista por palavras não ditas, eventos dramáticos, atitudes e expressões.
O texto de Logan não celebra os super-heróis, mas sim a humanidade e a esperança que eles representam. Se Wolverine sempre foi retratado como um herói – ou anti-herói – zangado, violento e explosivo nos filmes anteriores, com seu fator cool sempre ganhando de qualquer outra construção mais dramática, aqui Logan é um homem que já perdeu as esperanças e que vive um dia atrás do outro carregando o fardo das mortes que infligiu por toda sua longa vida e que tem um único objetivo na vida, proteger seu mentor a todo o custo. Mas tudo muda quando Gabriela (Elizabeth Rodriguez) o localiza e desesperadamente pede sua ajuda para levá-la até Dakota do Norte, onde uma jovem silenciosa que ela protege teria chance de sobreviver. Fazendo ouvidos moucos e refugiando-se em uma carapaça de ressentimentos e perseguições de décadas, Logan recusa-se a ajudar até que a chegada de uma gangue liderada pelo humano ciberneticamente aumentado Pierce (Boyd Holbrook) chega para caçar a jovem sob a guarda de Gabriela.
Como Batman no seminal O Cavaleiro das Trevas, Logan então relutantemente renasce e passa a fugir com Xavier e a jovem Laura (Dafne Keen, em seu primeiro papel) pelos EUA, com o longa tomando a estrutura de road movie. Se eu elogiei o roteiro pela forma como todo o status quo do filme é estabelecido natural e organicamente, sem depender da boa, velha e fácil muleta dos textos expositivos, não posso afirmar o mesmo em relação à história pregressa da menina que se revela uma mutante “fabricada” a partir de DNA de Logan, com os mesmos poderes, ou seja, fator de cura e garras que saem de seus membros (diferente de Wolverine, que tem três em cada punho, Laura tem duas em cada punho e uma em cada pé), além de um instinto feral de autopreservação. Aprendemos cada detalhe da origem da jovem e de outros como ela por meio de convenientes gravações em vídeo no celular de Gabriela que Logan recolhe e passa a assistir durante a viagem, aprendendo aos poucos sobre a manipulação do gene X para a criação de exércitos mutantes. Evidente que há a necessidade de explicação e a mudez inicial de Laura exige outros meios que não os diálogos, mas o uso razoavelmente constante dos vídeos cansa um pouco, ainda que de forma alguma detraia da história macro que é contada. Essa situação, aliás, é semelhante à menção à bala da adamantium que Logan carrega consigo na intenção de um dia finalmente conhecer a morte. Acho a ideia excelente, mas os lembretes constantes de que a bala existe e, em determinada altura, a revelação indireta de seu uso efetivo, torna esse artifício um pouco cansativo demais.
Afinal, se recorrer às gravações é como um cheat code, toda as sequências envolvendo a família de fazendeiros que Logan, Xavier e Laura encontra no meio da estrada são um primor de concisão audiovisual. São esses momentos, que constroem um sonho, uma noite em que todos podem comer bem e conviver em família e que são visceralmente destruídos logo em seguida que, para mim, dão a real dimensão do que é a vida de Logan, vida essa de que ele finalmente percebe que precisa fazer de tudo para afastar Laura, para dar-lhe um semblante de humanidade em meio à ambição e ganância. Se o filme já vinha muito bem até esse ponto, é nesse momento que vemos James Mangold no absoluto controle de sua arte, com sequências extremamente bem dirigidas que vão além dos excelentes momentos de pancadaria que vimos antes, especialmente aqueles selvagens protagonizados pela pequena Laura. Diria até mesmo que eu acho que a sequência de paz na fazenda é curta demais e que merecia mais destaque ainda na minutagem do longa, de forma que o horror que se segue pudesse ser ainda mais sentido, mas, no final das contas, tenho para mim que Mangold soube encontrar o ritmo exato para essa “pequena história idílica” dentro da tensão da fuga de Logan e seus protegidos.
Outro grande acerto da narrativa é a correlação da vida de Logan e dos eventos do filme com à do pistoleiro Shane, no longa homônimo que, aqui, foi batizado de Os Brutos Também Amam. O fato de Shane ser enquadrado como o último pistoleiro, um homem que carrega as mortes que infligiu em tudo o que faz e Logan ser basicamente o último mutante, com o mesmo fardo, além da conexão de Shane com o jovem Joey e, claro, a lição de moral embutida na narrativa, fazem de Logan quase que um remake moderno e super-heróico do clássico de 1953 e, ainda que se possa argumentar que os paralelos são um pouco didáticos demais, diria que eles não são exatamente isso, mas, apenas uma paralelização inteligente que dá estofo à narrativa sem que o roteiro precise recorrer à referências internas da mitologia do protagonista. E isso sem contar que não deve haver muita gente, hoje em dia, que efetivamente tenha assistido o filme citado, se eu quiser ser bem cínico e sincero…
Claro que nada disso funcionaria sem os trabalhos dramáticos de Hugh Jackman e Patrick Stewart, cada um representando um tipo de decadência, o primeiro a física e o segundo a mental. Vemos a dor de Logan por tudo o que ele viveu e também seu amor filial por seu mentor, assim como é visível o transtorno de Xavier com a consciência de sua condição e, também, seu amor paternal por seu pupilo. Mangold extrai o melhor dos dois atores que entregam não só as melhores versões de seus famosos personagens, como duas grandes atuações independente de personagem ou filme. E a jovem Keen consegue encarnar brilhantemente uma versão tão enfurecida quanto jovem do próprio Logan, convencendo o espectador quase que imediatamente que sim, ela só pode ser a filha dele. Até mesmo Boyd Holbrook consegue fazer de seu Pierce mais do que apenas um vilão genérico que está ali para cumprir tabela, ainda que ele definitivamente se aproxime mais do que deveria dessa classificação.
Logan é um grande filme de super-herói que, como os melhores do gênero, não ficam circunscritos aos tropos conhecidos. James Mangold entrega uma obra visceral e melancólica que funciona tanto dentro da mitologia estabelecida quanto como um filme independente, despreocupado com as amarras da continuidade. Seu sofrido protagonista ganha um arco valioso, valoroso e bonito, ainda que necessariamente violento e explosivo, que, com um singelo X, chega a um fim perfeito.
Logan (Idem – EUA, 2017)
Direção: James Mangold
Roteiro: James Mangold, Michael Green, Scott Frank
Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Dafne Keen, Boyd Holbrook, Stephen Merchant, Richard E. Grant, Eriq La Salle, Elise Neal, Elizabeth Rodriguez, Doris Morgado, David Kallaway, Han Soto, Jason Genao, Krzysztof Soszynski, Alison Fernandez
Duração: 137 min.