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Crítica | Living (2022)

Ensina-me a morrer.

por Ritter Fan
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Em 1952, seguindo o sucesso de Rashomon e o fracasso de O Idiota, Akira Kurosawa dirigiu um de seus filmes mais emotivos e mais bonitos. Apesar de Viver (Ikiru) não ser imediatamente lembrado como um de suas grandes obras, a grande verdade é que ele mostra a impressionante versatilidade do cineasta que, logo depois de adaptar Fiódor Dostoiévski, partiu para levar para as telonas uma versão esperançosa da lancinante e espetacular novela A Morte de Ivan Ilich, de Lev Tolstói, no processo criando outro longa memorável de sua prolífica carreira. E eis que 70 anos depois, o longa ganha uma refilmagem – não exatamente a primeira, eu sei – com ambientação de época na Londres dos anos 50 em regime de coprodução entre Reino Unido, Japão e Suécia, com roteiro de ninguém menos do que o romancista nipônico Kazuo Ishiguro, autor de, dentre outras obras, Vestígios do Dia e Não Me Abandone Jamais, e estrelada por Bill Nighy.

O primeiro grande acerto do remake é justamente não fazer o que Kurosawa fez em 1952, ou seja, ambientá-la em tempo presente. Não que Kurosawa tenha errado ao manter a produção na época em que foi feita, longe disso, mas se Ishiguro tivesse feito o mesmo agora, com o longa se passado em 2022, o efeito da história seria potencialmente muito diferente, pois a narrativa central de Ikiru simplesmente não me parece combinar com o frenesi tecnológico atual. Para firmar de imediato a obra nesse período, Oliver Hermanus faz uso da razão de aspecto padrão da época, ou seja, 1:33:1, mais quadrada, o que pode causar estranhamento para alguns pouco acostumados com ela, mas que, casada com sequências que parecem tiradas de filmagens da época, cria a mistura perfeita para imediatamente no mínimo aguçar a curiosidade do espectador.

E, claro, o segundo grande acerto da produção foi a escalação de Bill Nighy para viver o fechado, sério, sisudo e fleumático Sr. Rodney Williams, chefe de um pequeno grupo de funcionários do conselho da cidade de Londres, responsável, dentre outros, pelas autorizações necessárias para edificações. Nighy, apesar de talvez ser mais lembrado por papeis mais leves, com aquela veia cômica britânica clássica, entrega um perfeito burocrata que vive seus dias há décadas exatamente da mesma maneira e que, em um (não tão) belo dia, recebe o diagnóstico de que tem câncer já em estado terminal, com alguns meses de vida apenas, uma escolha que, eu poderia muito facilmente afirmar, faz do ator a versão ocidental do grande Takashi Shimura vivendo o Sr. Kanji Watanabe em Viver. Apesar de sua idade, Williams não estava preparado para isso – quem está? – e quase que imediatamente percebe que passou suas décadas dentro dos estritos conformes que ele se impôs, sem realmente realizar nada de efetivo ao longo de toda sua carreira repleta de papeis e de negativas constantes.

Depois de pateticamente tentar viver a vida que lhe resta por meio de noitadas intermináveis repletas de bebidas, mulheres e gastação de dinheiro, Williams decide fazer um último – ou primeiro? – ato de teimosia e bondade: aprovar e construir um parquinho para crianças em um terreno baldio que uma trinca de mulheres vinha tentando obter autorização para fazer há bastante tempo. No entanto, como em Viver, essa abordagem, essa história não é contada da maneira usual, pois é nesse aspecto que o roteiro originalmente co-escrito por Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni bebe mais diretamente de Tolstói, algo que, de sua maneira, Ishiguro repete em Living, permitindo, então, que o protagonista passe a ser o sujeito de comentários de seus colegas de trabalho em um interessante, mas talvez aqui muito célere, exercício narrativo.

Aliás, a velocidade do longa – consideravelmente mais curto que o original -, algo que “combina” com os dias imediatistas atuais, talvez seja também seu maior problema, ainda que, felizmente, não em relação ao Sr. Rodney Williams, já que Nighy tem tempo para construí-lo de maneira primorosa, em discretos, mas precisos incrementos que vão aos poucos derrubando a couraça aparentemente intransponível que o personagem construiu ao seu redor ao longo de décadas, com direito até mesmo a um trabalho que arrisca em inserir um sofisticado humor a algumas sequências dos dois primeiros terços da projeção. Mas a questão do tempo apertado atrapalha consideravelmente a abordagem dos personagens coadjuvantes, ambos da equipe de Williams, a jovem Margaret Harris (Aimee Lou Wood), prestes a mudar de emprego, e especialmente o recém-contratado e inexperiente Peter Wakeling (Alex Sharp).

Sob diversos aspectos, Wakeling pode até mesmo ser visto como protagonista, já que sua visão do Sr. Williams é o que funciona como enquadramento da narrativa, mas o personagem em si é vazio de qualquer outra qualidade que não seja sua relativa inocência em relação a praticamente tudo ao seu redor. A conexão dele com Williams – que fica evidente ao final – é, na melhor das hipóteses, forçada e, na pior, artificial e perdida em meio a uma outra história qualquer que não tem relação com o coração do que vemos se desenrolar na obra. Faltou uma distribuição temporal maior para que Alex Sharp pudesse desenvolver seu personagem para além da estereotipada “versão jovem de Williams, mas ainda passível de ser salvo”. Aimee Lou Wood tem mais sorte com sua Margaret Harris, já que a personagem serve, ainda que indiretamente, de catalisadora para a realização, por parte de Williams, do que ele vinha perdendo com seus anos e anos de sisudez extrema, ganhando um pouco mais de espaço quando ela passa a ser uma espécie de conforto – não vejo, ali, nenhum tipo de interesse romântico por quem quer que seja – ao velho burocrata. Mas mesmo Harris tem efeito e função limitadas, com uma inserção apenas funcional dentro do desenvolvimento narrativo e não exatamente orgânica.

Mas, assim como Ikiru, Living é uma lição de vida ou, talvez, uma lição de morte. Mesmo com seus problemas que o mantém distante da versão original em termos qualitativos, a obra de Oliver Hermanus é tocante e, mais ainda, é capaz de nos levar à contemplação sobre como conduzir nossa vida entre deixá-la passar passivamente ou arregaçar as mangas para pelo menos tentar fazer algo que possa significar algo real para alguém que precisa, por menor que seja a ação.

Living (Idem – Reino Unido/Japão/Suécia, 2022)
Direção: Oliver Hermanus
Roteiro: Kazuo Ishiguro (baseado em roteiro de Akira Kurosawa)
Elenco: Bill Nighy, Aimee Lou Wood, Alex Sharp, Tom Burke, Adrian Rawlins, Hubert Burton, Oliver Chris, Michael Cochrane, Anant Varman, Zoe Boyle, Lia Williams, Jessica Flood, Patsy Ferran, Barney Fishwick, Nichola McAuliffe
Duração: 102 min.

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