Apesar de tecnicamente fazer parte de A Guerra do Cativo, nova saga espacial da dupla Daniel Abraham e Ty Franck que escreve sob o pseudônimo James S. A. Corey, a breve novela de 90 páginas Livesuit pode ser tranquilamente lida de maneira independente, pois sua relação com A Misericórdia dos Deuses, primeiro capítulo completo da história, é no máximo tênue e não exige conhecimento prévio algum e tampouco “estraga” a experiência de leitura do romance, pois não há spoilers dele. A estratégia de intercalar romances com novelas é um padrão de Corey que fez isso com maestria na série The Expanse, permitindo a exploração de “cantinhos” ou “recortes” do vasto universo criado sem interromper narrativas mais densas.
Para quem tiver lido o polêmico romance Tropas Estelares, de Robert A. Heinlein, e/ou assistido à incompreendida adaptação cinematográfica de Paul Verhoeven, Livesuit parecerá muito familiar. Afinal, em seu âmago, a novela lida com um batalhão de infantaria de humanos em uma guerra espacial de proporções gigantescas contra alienígenas variados, mas normalmente de forma insectoide. A principal diferença de contexto é que não se trata de uma história preocupada em contar como tudo começou, já arremessando o leitor em meio à pancadaria que, conforme aprendemos, já dura pelo menos algumas décadas, algo que se torna ainda mais interessante pela maneira como Corey se recusa a esquecer de trabalhar a dilação temporal causada por viagens em velocidade próxima à da luz e pelo espaço brana (derivado da Teoria das Cordas), algo que vemos, ainda que brevemente (mas espetacularmente), no citado A Misericórdia dos Deuses.
Outra diferença importante – essencial! – e que dá nome à novela, refere-se às armaduras que os soldados alistados precisam usar para ter alguma chance de sobrevivência nos embates nos mais diversos ambientes contras os mais diferentes inimigos. A armadura livesuit é como uma membrana extremamente resistente com inteligência artificial que cobre completamente os corpos dos soldados, inclusive a cabeça com um capacete que não abre, com a função não só tática e estratégica, como também de mantê-los vivos, alimentando-os, reaproveitando os fluidos corporais, injetando medicamentos e até mesmo executando complexas cirurgias em pleno movimento. Imaginem uma ultramoderna e mais maleável armadura do Homem de Ferro que, porém, não pode ser retirada uma vez enxertada cirurgicamente, a não ser no final do período de alistamento, conforme é a promessa aos soldados que sobreviverem, o que, claro, cria uma camada extra de sacrifício a todos que se voluntariam para lutar no conflito.
O protagonista é Kirin e é sob seu ponto de vista que a história é contada, história essa repleta de ação e que funciona como um esperto “manual de funcionamento da Livesuit” para os leitores, mas sem parecer que é justamente – e quase somente – isso. Vemos um pouco de seu passado, sua decisão em se alistar, mas o verdadeiro objetivo dos autores é lidar com a armadura e o quanto ela, aos poucos, vai cobrando seu caríssimo preço de que a usa, ou seja, a própria humanidade que ao poucos – e aos pedaços – vai embora a cada combate, a cada ferimento que precisa ser curado, por vezes com a substituição de membros por massa cibernética pela falta de minha capacidade de descrever com mais eficiência o processo.
Obviamente que a alegoria da desumanização de soldados em uma guerra está no centro da conversa estabelecida em Livesuit. Kirin não tem mais rosto, não pode mais transar, sequer tem necessidades fisiológicas normais e só se comunica com seus colegas de pelotão por intermédio de alto falantes na armadura ou por rádio, recebendo notícias de casa por meio de telejornais e de mensagens em vídeo que, porém, em razão da dilação temporal, não estabelecem conexão imediata com ele. E, com isso, Kirin luta incessantemente, arriscando sua vida por um objetivo cada vez mais difuso de impedir que os alienígenas destruam os mundos que fazem parte de seu universo, sem exatamente se perguntar se há outras soluções e qual é a natureza da armadura que usa, algo que Corey trabalha com calma, mas também com constância, criando uma camada de mistério que ganha aceleração quando Kirin recebe uma mensagem de sua antiga namorada, agora décadas mais velha que ele.
Abraham e Franck, como sempre, escrevem muito bem e a leitura, portanto, é fácil e agradável, com as narrativas no presente misturando-se com eficiência com os flashbacks oferecidos na forma de reminiscências de Kirin. No entanto, a dupla tem pouco a realmente falar aqui e o dilema da entrega completa de um soldado à uma guerra que pouco realmente compreende é um tema que, apesar de sempre muito interessante, esgota-se rapidamente em meio às fascinantes e orgânicas explicações sobre como a livesuit funciona. A novela, com isso, acaba não passando de uma curiosidade que pode ou não ter relevância para os romances futuros da saga, com minha aposta sendo que ela pouco ou nada influenciará a narrativa central a não ser que haja uma guinada monumental na direção estabelecida em A Misericórdia dos Deuses. Mesmo assim, trata-se de uma rápida sem dúvida curiosa, uma versão “de bolso” de Tropas Estelares que nos relembra dos horrores da guerra.
Livesuit (Idem – EUA, 2024)
Parte de: A Guerra do Cativo
Autoria: James S. A. Corey (nom de plume de Daniel Abraham e Ty Franck)
Editora original: Orbit
Data original de publicação: 1º de outubro de 2024
Páginas: 90