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Crítica | Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo

Amor e medo.

por Fernando JG
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Without you the poetry within me is dead 

Nightwish

É comum que se leia, erroneamente, a obra pelo autor, ou o autor pela obra. Em se tratando do poeta em questão, não é rara a leitura de que a sua figura errante, doentia, perversa e devassa tenha influenciado o excesso da sua poesia. Como o enunciador poético diz no poema Lembrança de Morrer: “foi poeta – sonhou – e amou na vida”. Isso justificaria seu traço poético decadentista e sombrio, lotado de misantropia e de um romantismo negro. Sua poesia, neste caso, seria um espelho da alma. Mas vejo aí um erro fulcral. Reduzir a complexidade da obra à figura pessoal é sobretudo negar as influências estéticas e literárias, o meio social e artístico e a Escola romântica pela qual se forma Álvares de Azevedo. É negar a técnica, o trabalho e o esforço. Havia lido Byron, Musset, Victor Hugo, Shelley. Sua poética não é somente fruto de uma alma atormentada – explicação rasa da poesia de A.A. -, mas é sobretudo resultado da importação de uma poética europeia e de uma tendência da literatura que chegava aos jovens estudantes da São Francisco, em São Paulo, através da assídua leitura dos clássicos românticos alemães, franceses e ingleses. O ultrarromantismo, como quis a crítica chamar este segundo instante do Romantismo brasileiro, não se engane, é uma convenção poética de bases sólidas, não um capricho destinado unicamente às almas inquietas. Os poetas brincam de morrer, embora muitos tenham morrido precocemente.

Este é um ponto de discordância entre os críticos da obra, sobretudo no momento de sua recepção. Por muito tempo leu-se que o gênio boêmio e rebelde da poesia azevediana encontrava apoio na personalidade do poeta. Deste modo, cunhou alocá-lo numa espécie de “divã da crítica”, buscando aspectos pessoais que justificassem a morbidez e o desespero de sua lírica. Neste sentido, surge um dos ensaios mais influentes da literatura brasileira do século XX, o famoso Amor e Medo de Mário de Andrade. Ali, naquela reflexão aguda da poesia romântica, Mário conferira à poesia azevediana um sentimento comum a praticamente todo jovem: o medo de amar. Nisso, constata um desejo edípico recalcado do poeta que se direcionava à sua mãe e irmã, constantemente referenciadas nos poemas e alegorizadas pelas figuras femininas pelas quais amedronta-se: a virgem, a prostituta e a pálida. Emergiria daí um medo do feminino. O prototípico Amor e Medo marioandradino é um percurso psicanalítico arriscado e refutado por críticos do calibre de Antonio Candido, Cilaine Alves e Vagner Camilo. O debate é interessante, mas não cabe por agora. 

Álvares de Azevedo inaugura uma determinada tendência nas letras brasileiras em cuja preocupação se direciona ao esteticismo mórbido e profundamente melancólico, esforçando-se em revelar instantes da degradação que recai sobre a decadente subjetividade humana dividida entre a harmonia e o conflito, entre a interioridade e o mundo externo. O conteúdo incondicionado é o princípio motor da Lira, sobre o qual o lirismo se move a partir da espontaneidade do gênio que cria não mais condicionado por regras que guiaram a arte clássica do Setecentos, mas por meio da inventividade proporcionada pelas faculdades imaginativas. O Eu Absoluto é a figuração mais própria ao espírito romântico e portanto às sensibilidades literárias do poeta. 

O nacionalismo literário do qual Gonçalves Dias é precursor não existe em Azevedo enquanto proposta de construção de uma literatura brasileira, como no indianismo gonçalvino, isso demonstra dissonâncias entre os movimentos culturais no Romantismo brasileiro. À medida que o nacionalismo via no esteticismo de segunda geração uma importação inócua do desespero byroniano europeu, A.A., como representante do chamado “ultrarromantismo”, negava a nacionalidade literária por não ver benefícios na separação literária entre Brasil e Portugal. A discussão se complexifica, obviamente. À medida que não tínhamos uma língua brasileira, não poderíamos ter, em consequência, uma Literatura Brasileira. Isso será retomado como ponto de debate entre os modernistas de 1922, sobretudo em Mário e Oswald de Andrade, que inventam uma “língua brasileira”. Retomando a Álvares, a isso se coaduna à sua estética antiparticipativa, não engajada às preocupações da construção da nacionalidade, mas por outro lado coloca-se como profundamente inovadora por introduzir na literatura brasileira o subjetivismo cético e autorreflexivo que inauguram a modernidade. Nossa liberdade sentimental é tributária direta deste poeta. 

A Lira dos Vinte Anos é a mais importante obra de Álvares de Azevedo. Nela, encontram-se poemas que dissecam notas poéticas que referem-se aos estados de alma de um sujeito lírico cindido entre a dor e a volúpia de amar. Dividida em duas partes, na primeira convergem poemas em que o amor platônico, o desejo e a ilusão são as temáticas recorrentes que evidenciam um sentimentalismo quase ingênuo. Na segunda, o desespero, o ceticismo, a ironia, o desejo de morrer e o medo apresentam-se como complemento negativo da primeira parte. Faz-se, com isso, a binomia azevediana, isto é, a duplicidade da consciência lírica a que se referem inúmeros teóricos da obra azevediana e que figura como a sua principal característica. É, em sentido estrito, a fusão entre o sublime e o grotesco teorizado por Victor Hugo no prefácio à Cromwell: “Le sublime et le grotesque”. 

Na Lira dos Vinte Anos atravessamos caminhos gloriosos e decadentes que nos levam ao cerne dos sentimentos mais profundos e sinceros que habitam o espírito. O leitor há de se atentar aos prefácios de cada uma das partes que compõem a obra, visto que não são apenas comentários vagos que fazem separar as seções, mas indicam o segmento temático e mesmo o aporte teórico a que se apoiará os poemas no respectivo segmento. Um tema comum a todos eles é o do poeta, daquele ofício solitário, indicador do sujeito deslocado num mundo em que nada o é suficiente e tampouco ninguém o compreende. Este poeta, sujeito sem nome, é aquele que sente, clama e chora. Em “O poeta”, o eu lírico padece de modo subjetivo, guardando em si o desejo da partida em razão da não realização sexual par rapport sua amada, objeto de desejo ideal, mas inalcançável como em todo o Romantismo. Tal aspecto é reafirmado no inigualável “Lembrança de Morrer”, que produz um efeito poético de despedida deste a quem o sofrimento é amigo. Uma espécie de carta suicida que responde, de certo modo, ao poema “O poeta”. Unindo ambos os poemas, a mensagem é evidente: o poeta tem vontade de morrer. A consecução de todo o anseio de morte é dada ao poema seguinte, àquele que abre a segunda parte da lira, “Um cadáver de poeta”. Aqui, o poeta morre, materializando o embate irreconciliável entre subjetividade e mundo exterior. Essa sequência exprime o comportamento poético de Azevedo.

A interpretação de “Meu Sonho” feita por Antonio Candido é polêmica. Identifica o gênero balada e diz que todo ele está estruturado de acordo com sua metrificação anapésica, emulando a sonoridade do cavalgar. A tonicidade acentua-se na terceira, sexta e nona sílabas. Duas átonas e uma tônica, assimilando o ritmo da cavalgada: UU — | UU — | UU —. “Cavalgada ambígua” é o título conferido ao ensaio dedicado ao poema, que analisa o sonho por uma perspectiva sexual iluminada pelo viés da psicanálise. O sonho é senão uma das maiores problemáticas no Romantismo: lugar de fuga, escape, transcendência, adquire a fama de lugar-comum por ser o meio utilizado pelos poetas para desconstruir a realidade. O poema relata um cavaleiro cavalgando na absoluta treva, carregando, além do remorso e dos gemidos que lhe escapam dos lábios, armas ensanguentadas nas mãos. A fantasia poética estabelecida, segundo Candido, seria o desejo sexual de cunho masturbatório do poeta, aspecto que seria o princípio organizador do poema. O mito do adolescente seria refeito aqui e o cavaleiro das armas impuras seria uma projeção da imagem do próprio poeta em prática masturbatória, carregando a culpa nas mãos.  

A transcendência do sujeito lírico se dá através da paixão e do amor, é por meio desses sentimentos que o enunciador alcança esse estado absoluto. A Lira é toda uma devoção, um pranto melancólico pela inacessibilidade de amar e consumar o desejo pelo objeto amoroso. “Seio Virgem”, “Pálida à luz da lâmpada sombria”, “Virgem morta” etc. destilam notas poéticas de profunda paixão para um ideal que é distante. O Eu lírico ama só, solitário, sem retorno. Amar e nunca ser amado; ver e nunca poder tocar; desejar sem nunca poder realizar. Esse embate entre o desejo e o objeto é o que faz da Lira dos Vinte Anos uma das obras mais emotivas e tristes da literatura nacional. É a materialização, pela letra, dos sentimentos sinceros de amor e abandono, que alcançam a sua epítome na figura do romântico desiludido.

A ilusão converte-se em amargor na segunda parte da Lira. O desencanto pela compreensão da impossibilidade de alcançar esse ideal, essa fusão de almas cuja transcendência seria o fim, desemboca numa ironia áspera. Aí, a obra torna-se cética, refuta a imortalidade da alma que tanto pregou na primeira parte por meio do amor puro e virginal, e dá luz às personagens solitárias e imperfeitas, às prostitutas e ao horror. A ironia é, como se nota, a negação do ideal e o cansaço pelo sentimentalismo. A ironia é o recurso que permite ao poeta tornar-se crítico dos próprios ideais ingênuos e rir de si mesmo, demonstrando as falhas, as imperfeições do amor e não mais o idealizando. A Lira dos Vinte Anos é toda dicotomizada entre o ideal e o desencanto.

Assim como Drummond, Álvares de Azevedo, esse nosso amigo distante que tanto compreendeu os impulsos abstratos e caóticos da interioridade, nunca pôde deixar de relatar o quão pequeno é o mundo diante da infinitude da alma humana. E compreendeu que consumar o amor no ato real de amar talvez nunca seja o bastante para encher nossa alma de plenitude. Fausto, que sempre quis amar, quando amou se viu infeliz. O autor entende, como ninguém, que o sentimento só é pleno na busca, isto é, quando se ama o sentimento de amar, mas não a sua realização. A paixão como a idealização suprema do objeto de desejo só pode existir na esfera da imaginação, não na esfera do real. E sendo a imaginação a principal fonte da criação poética, a vontade de amar é necessariamente muito mais importante do que a consumação em vias de fato e por isso amor e poesia se encontram unidos enquanto laço divino do ato criativo. Foi poeta, amou e sonhou na vida. 

Lira dos Vinte Anos (Brasil, 1842)
Autor: Álvares de Azevedo
Editora: Garnier
Páginas: 189

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