O Manto do Urso traz um encadeamento dramático muito similar ao que Luca Enoch utilizou no volume anterior da série, Cavalgando com o Diabo. Isso quer dizer que temos aqui uma grande força da trama histórica no roteiro, com um elemento de diferença, porém: as questões culturais. Se a passagem de Lilith pelos Estados Unidos em plena Guerra de Secessão ganhou um foco nas intricadas relações de grupos separatistas do sul contra os legalistas e abolicionistas do norte, aqui em O Manto do Urso o autor direciona os olhos para o comportamento dos povos nórdicos, seu meio cultural e religioso de organização, suas nuances políticas fortemente enraizadas em suas crenças e sua fantástica relação com o mar.
A trama começa na Groenlândia, no século XI (notem que aqui voltamos no tempo, em vez de avançarmos) e Lilith está ainda mais inserida em uma realidade que a vê como uma divindade, como uma representante ou encarnação de deuses/criaturas da mitologia nórdica, que chegou ali com um propósito não muito claro. O roteiro, nesse caso, é mais observador. Lilith demora um pouco para encontrar o espinomorfo e, quando o encontra, é atacada por ele, o que adia um pouco a destruição e faz com que ela esteja por mais tempo ao lado dos nativos, em uma busca que dessa vez tem menos violência interna, no grupo que Lilith acompanha (só tive ódio mesmo daquela odiosa mulher materialista que destratava o marido toda oportunidade que tinha) e mais violência em torno desse grupo, representada pelo portador do triacanto.
E lá vamos de mais uma incrível participação dos Cardos na série, dessa vez com um twist que me deixou abismado. O Cardo não só discutiu com Lilith a natureza das coisas que ela vê (eu entendi certo? Ela está realmente morta em seu tempo?) como a salva no final, mais uma vez voltando àquele elemento narrativo que elogiei em O Fronte de Pedra, de vilões e mocinhos da trama terem os devidos tons de cinza na construção de suas personalidades e motivações, tirando o maniqueísmo entre “bem total vs. mal total“. A questão não é nem mais o olhar ético e moral que podemos dar às ações violentas de Lilith, mas as implicações dela na construção e alteração da História — imagino que todas essas mudanças deverão ter um bom preço para a Terra do futuro — e também da legitimidade de sua missão. Já levantei esse ponto e volto à ele: tudo pode ser um subterfúgio do Cardo para desviar a cronoagente de seu caminho, mas ao que tudo indica, Lilith está parcialmente às cegas. Tanto sua formação quanto Escuro lhe escondem coisas muito importantes.
Aqui tivemos algumas cenas ótimas mostrando o despertar do trífido na humanidade, transformando os portadores em “homens-árvore” e imediatamente infectando outros humanos ao redor. Não sei por que essa sequência me lembrou um pouquinho de Brad Barron. A sensação apocalíptica é rapidamente conseguida e, mais uma vez, reconsideramos o olhar direcionado ao parasita. Não sei se é uma percepção só minha, mas dá a entender que tem algo a ver com uma “resposta da natureza“, como se esse despertar tivesse a ver com a preservação da flora e fauna na Terra, tanto que a própria Lilith ressalta isso em uma de suas falas, de que a superfície do planeta virou um paraíso depois que os humanos foram para os subterrâneos. Mal posso esperar para ver o que Luca Enoch está preparando para nós a seguir.
Lilith – Vol. 5: O Manto do Urso (Il Mantello Dell’orso) — Itália, novembro de 2010
Roteiro: Luca Enoch
Arte: Luca Enoch
Capa: Luca Enoch
Editora: Sergio Bonelli Editore
No Brasil: Red Dragon Publisher, 2020
130 páginas