Baseado em uma “peça documental” de Gianina Carbunariu (que coescreve o roteiro do filme), Letra Maiúscula é mais uma investida do diretor Radu Jude na História da Romênia, mais uma vez trilhando a linha de safras próximas em sua filmografia, como Aferim! (2015), Nação Morta (2017) e Eu Não me Importo se Entrarmos Para a História Como Bárbaros (2018). A dramatização dos arquivos da polícia secreta romena (Securitate) ganha no filme um misto de ironia documental e crítica política, algo constante nos filmes históricos do diretor e que ele explora de modo a nos dar diferentes facetas narrativas sobre o “polêmico caso” em cena.
Em um muro da cidade de Bucareste, no ano de 1981, a seguinte frase em letra maiúscula poderia ser lida: “Queremos justiça e liberdade!”. Nos dias seguintes, frases de ordem política e de crítica ao governo do país (então sob o comando de Nicolae Ceaușescu) apareceram em outros lugares da capital, colocando as autoridades locais em polvorosa. Com a investigação estabelecida, descobriu-se o autor: o adolescente Mugur, que passa a ser acompanhado de perto pelas autoridades e atravessa uma considerável reprimenda dos conselheiros, professores, pais e amigos, todos muito interessados em fazer com que ele “se endireitasse” e assumisse que o partido e o governo eram bons.
Criar uma narrativa a partir de relatórios de segurança nacional e de imagens televisivas de começo dos anos 80 não é uma tarefa fácil. Coube a Radu Jude assumir, desde muito cedo, um contraste temático e quase cínico através da montagem: ao passo que atores entram em cena e leem trechos dos relatórios policiais, há um corte que nos leva para os blocos documentais ou propagandícios, exibindo as mais diversas funções, produtos e linhas de pensamento ideológico-cultural do país naquele período.
Num primeiro momento, o “crime” da inscrição em letra maiúscula é tratado a partir de um tom cômico, com os burocratas, em diferentes cargos oficiais, preocupados com essas inscrições e tentando ao máximo resolver, sozinhos, o problema. O diretor começa a misturar fotografias dos documentos, de análise da caligrafia e de cenas criadas para a representação, com cenários minimalistas mostrando diferentes ambientes onde aquele tipo de relato teria acontecido. Essa dualidade se modifica ao longo do filme, ganhando ares metalinguísticos no final, à medida que o diretor passa a usar ironia na exploração do caso, seja através dos absurdos políticos, sociais e comportamentais envolvidos, seja pelas consequências e aparente conspiração em torno do adolescente rebelde.
Nessa sua representação histórica, o Radu Jude procura mostrar como a impessoalidade dos gabinetes e dos ambientes familiares capturados apenas pelas escutas não condizem com a realidade, com os humanos por trás dos relatos oficiais, do linguajar mecânico. Mesmo o recorte sendo micro (é um evento na vida de um adolescente e sua família, seus amigos) o espectador consegue imaginar como o governo aplicava esse mesmo tipo de perseguição, recrutamento de olheiros e praticamente uma lavagem cerebral (ideológica) para as mais diversas contrariedades frente ao poder central. É um filme quase solene que toca em um ponto hoje muito discutido, mas não o bastante para que seja verdadeiramente garantido a todas as pessoas: a liberdade de expressão. E claro, por ironia dessa própria liberdade, a capacidade do indivíduo em responsabilizar-se e arcar com as consequências dessa liberdade expressa.
Letra Maiúscula (Tipografic Majuscul, 2020)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude, Gianina Carbunariu
Elenco: Serban Pavlu, Alexandru Potocean, Ioana Iacob, Doru Catanescu, Constantin Dogioiu, Bogdan Zamfir, Serban Lazarovici, Silvian Vâlcu
Duração: 128 min.