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Crítica | Lenny (1974)

Vida e paixão de Lenny Bruce.

por Fernando JG
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Lenny, dirigido por Bob Fosse, tem um interesse muito evidente em relação à trama: explorar, em diversos níveis, a caótica vida do problemático comediante durante o seu auge. A cena inicial é emblemática porque marca logo de entrada o ritmo fílmico que será adotado: “ele foi preso dez vezes por porte de drogas e atentado ao pudor. Senhoras e senhores: L. Bruce”. Passeando por um curto período da trajetória do protagonista, o filme divaga e analisa o comediante dentro e fora dos palcos, mas são nos encontros noturnos durante seus shows que o filme se esbalda enquanto material e objeto fílmico, revelando não só parte da personalidade desse anti-herói, mas sobretudo a hipócrita moral estadunidense. Conhecido por ser ácido, obsceno e vulgar, Bruce não poupa nem mesmo as maiores oficialidades do país de se tornarem piada nos seus textos. 

O filme, sendo uma cinebiografia, decide construir uma estrutura fílmica que se assemelhe a um documentário, de tal modo que esse pseudo-documentário sobre a vida do protagonista, essa uma metanarrativa, entrecruze a narração dos fatos descritos por terceiros com episódios da trajetória de Bruce ele mesmo, conferindo um tom de verossimilhança à película, afinal, trata-se de uma cinebiografia. É uma estratégia excelente para o gênero no qual se insere o filme. Há, sem dúvida, uma aparência de verdade ao longo da película. Como fio condutor, escolhe manter a narrativa presa num storytelling que disseca sobre o relacionamento conturbado entre ele e Honey, entregando, como objeto total, um drama pessoal no arquétipo de um romance problemático. 

Como se falasse da boca para fora num almoço em família, Lenny massacra lentamente todas as maiores instituições norte-americanas, da família à presidência da república, expondo o que se esconde por trás das máscaras de “homem de bem” e “família e pátria” que sustenta a moderna sociedade como um todo. Embora se encontre num lugar geográfico em que se preza a liberdade, Bruce se vê perseguido por agentes e mesmo coagido a evitar esse tipo de obscenidade contra a frágil moral. E então constrói-se na semântica fílmica uma tensão porque fazer comédia a respeito do modus operandi dos seus compatriotas torna-se uma espécie de blasfêmia inaceitável. O comediante, num espírito contracultural – e o filme se coloca num momento histórico de rebeldia -, rejeita seguir as regras implícitas do jogo e cria as suas próprias.

Lenny Bruce é, enfim, uma pedra no sapato da sociedade norte-americana ao passo que revela o recôndito, provocando imediatamente um estranhamento, trazendo à luz o que deveria estar escondido. A relação entre ele e Honey (Valerie Perrine) ocorre numa linha tênue entre paixão e destruição, numa intensidade passional que muito vagamente demonstra-se como um prenúncio do fim de ambos. Visivelmente, o anti-herói da trama é pressionado ao limite, aspecto esse que apenas realça a atuação segura de Dustin Hoffman, que esbanja maturidade, sex appeal e liderança numa película que depende única e exclusivamente de sua performance. 

Muito apesar do mérito de Hoffmann e igualmente de Valerie Perrine como atores principais, há algo na performance do próprio filme que o leva a ser desinteressante a despeito da ótima biografia narrada. O ritmo impresso no enredo faz com que demore a engatar de vez, enchendo todo o cenário de monotonia não só na colorimetria da obra, que persegue um mesmo tom passadista em preto e branco, mas no próprio texto, inflado durante toda a sua primeira hora com situações extremamente desinteressantes – o que é arrumado no último ato com a queda do herói, afinal, essa também é uma película que trata da ascensão e queda de um homem que, lutando contra a maré conservadora que se instalava nessa entidade norte-americana a que chama de sociedade, sucumbe deixando um legado, seja ele qual for.

Um outro ponto que entra em atrito é o efeito fílmico: Bruce há de ser visto como herói ou anti herói? Quero dizer, o filme busca retratá-lo como herói piadista, revolucionário numa certa medida, contracultural, libertário ou no fundo ele é apenas um showman inconveniente, cujas piadas pedantes, longe de serem engraçadas, são usadas para ferir ou ofender uns e outros? Essa ambiguidade de sentido acaba por interferir no curso da película, sobretudo na construção de caráter do personagem, que não tem a capacidade de gerar um elo de identificação com o público a que se dirige dentro e fora das telas. 

O cineasta acerta em aspectos cruciais, nos transmitindo a sensação de acompanhar, como se ainda estivesse vivo, um show de Bruce. Os enquadramentos à meia luz, a atuação de Hoffmann, o estilo pseudo documental, entre outros, mostram-se como acertos dentro da totalidade do filme, contudo, embora busque estabelecer uma espécie de ode ao seu tributado Lenny Bruce, narrando vida e morte, o texto não decide se o seu protagonista é enfim um pedante ou um revolucionário. O que fica, na impressão geral, é que apesar de uma performance ímpar de Dustin Hoffmann, a caracterização de personagem  e a perspectiva fílmica não conseguem traduzir de maneira pontual o tipo de homem que buscava ser Lenny Bruce e nisso resta uma ambiguidade de caráter incômoda e certamente evitável. 

Lenny (1974, EUA)
Direção: Bob Fosse
Roteiro: Julian Barry (baseado na biografia Lenny, de Julian Barry)
Elenco: Dustin Hoffman, Valerie Perrine, Jan Miner, Stanley Beck, Rashel Novikoff, Gary Morton, Guy Rennie, Aldo Demeo
Duração: 111 min. 

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