Em Lendas Brasileiras (1945), Luís da Câmara Cascudo reúne 21 narrativas folclóricas de várias regiões do país, muitas delas apresentadas em versões alternativas às mais repetidas em certos Estados, cidades ou famílias, o que acaba sendo uma experiência de descoberta e curioso estranhamento para o leitor, ao deparar-se com novas facetas de aventuras conhecidas já há tanto tempo. Mesmo com uma linguagem mais refinada na forma conforme apresentadas no livro, exigindo atenção de leitores despreocupados ou menos exigentes “só por estarem lendo um compilado de histórias populares” essas lendas formam o núcleo da tradição oral brasileira, transportando-nos a lugares onde o real e o fantástico se misturam de forma natural e cheio de surpresas.
A organização das narrativas por regiões geopolíticas facilita a identificação dos traços característicos dos territórios e compartimentaliza culturalmente os relatos na cabeça do leitor, oferecendo uma perspectiva que abraça a diversidade das histórias — com seres que habitam morros, matas, cidades, cavernas, mares e rios, por exemplo, às vezes impressionando por trazerem traços que não imaginaríamos presentes ou típicos de determinada região. Esse modelo de organização dos dramas poderia ter ainda mais força se o autor delineasse (mesmo que de forma resumida) os caminhos históricos e culturais que moldaram e reinventaram tais lendas, algo que só veríamos muito bem acabado em seu projeto de 1947: Geografia dos Mitos Brasileiros.
Ao revisitar aventuras tão marcantes para o povo brasileiro, como Negrinho do Pastoreio, Iara, Cobra-Norato, Cidade Encantada de Jericoacoara, Morte do Zumbi, Virgem Aparecida, Chico Rei e tantas outras que exploram temas universais, mundanos ou sobrenaturais, a obra preserva com charme a riqueza do nosso folclore, celebra a tradição oral e conecta o público a histórias que, mesmo famosas em outros recantos do país, podem ser uma novidade para alguns. É válido questionar a seleção reduzida de histórias neste livro (afinal de contas, lendas nacionais é o que não faltam para aparecer aqui), e penso que este seja um dos pontos fracos do volume: a perda de oportunidade para explorar melhor o escopo lendário nacional; algo que, felizmente, o autor compensaria em produções posteriores, como o já citado Geografia dos Mitos Brasileiros e o igualmente incrível Contos Tradicionais do Brasil.
Como registro histórico e antropológico, Lendas Brasileiras sintetiza um dos muitos lados míticos da memória coletiva e abre uma janela para os modos de vida e crenças dos diversos grupos sociais, étnicos e religiosos do Brasil. Ainda que o rigor analítico e a profundidade das discussões fiquem aquém dos estudos mais detalhados que o autor desenvolveria, o livro é bom em sua simplicidade e, pelo menos, tem alguma coisa de explicações ao seu final, onde lemos informações interessantes sobre algumas lendas, o significado e a origem de algumas expressões, e a indicação de algumas fontes primárias dessas tramas.
Ao destacar o encanto e a magia das lendas, Câmara Cascudo cria um equilíbrio sutil entre celebrar nossa tradição oral e expor os aspectos mais controversos da nossa história, já que essas lendas têm, como pano de fundo, problemas sérios que encontramos nas relações sociais e com o meio ambiente. Essa abordagem revela a tensão entre preservar nosso legado cultural e a necessidade de um olhar crítico sobre os elementos que moldam as diversas relações em nosso país. Lendas Brasileiras não só traz algo interessante para o cenário literário e antropológico, mas também nos convida a refletir profundamente sobre os limites e as possibilidades da narrativa tradicional em meio às transformações do mundo contemporâneo.
Lendas Brasileiras (Brasil, 1945)
Autor: Luís da Câmara Cascudo
Edição lida para este crítica: Global Editora (Janeiro de 2001)
176 páginas