O tempo não é um rio. O tempo é uma selva cheia de monstros.
- Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos episódios anteriores.
Será mesmo, como muitos dizem por aí, que Legion é apenas forma sobre a substância? Noah Hawley sem dúvida alguma criou uma viagem psicodélica e lisérgica que chega a desafiar a fronteira entre série de televisão e obra experimental que apenas é levemente inspirada nos quadrinhos, algo que ele não faz nenhuma questão de frisar, mas será que o excepcional design de produção atemporal, a belíssima fotografia multi-colorida e os mergulhos enlouquecidos na mente de seu protagonista David Haller escondem um vazio gigantesco, em uma tentativa do showrunner de se esquivar de contar uma história relevante?
O primeiro episódio da derradeira temporada da série me fez pensar mais seriamente nisso, pois mesmo a segunda temporada, que muitos acharam inferior à inaugural, eu acabei gostando muito, apesar de realmente ter vislumbrando problemas. Mas Chapter 20 emprega 20 minutos para introduzir uma nova personagem, a mutante que viaja no tempo Switch (há um personagem dos quadrinhos Marvel com esse nome, mas ele não parece ter sido a inspiração aqui), vivida por Lauren Tsai em sequências e mais sequências absolutamente fascinantes que envolvem procurar uma virgem grávida, achar o peixe laranja, correr atrás de um ônibus amarelo que, porém, é vermelho, e engatinhar por tubos transparentes. E, quando ela chega onde tem que chegar ou onde ela sempre esteve, depende – basicamente dentro da mente perturbada de David – a insanidade continua ou é até intensificada quando descobrimos que o super-poderoso mutante, agora, tem um culto de seguidores liderados por Lenny, conhecida pelo título de Rainha do Café da Manhã, que é mantido constantemente drogado e subjugado diretamente pelas ondas mentais do Legião que são “fumadas” pelos membros, incluindo uma gigantesca figura que mescla um suíno com Jabba, o Hutt.
É como se Hawley estivesse simplesmente materializando seus sonhos e pesadelos, sem um objetivo muito claro, talvez até sem objetivo algum. É isso que certamente leva a comentários na linha de que Legion privilegia a imagem e sufoca a história, comentários esses que são razoáveis, fazem sentido, mas de que eu discordo veementemente. Reconheço, claro, que os aspectos visuais da série são seus chamarizes, são aquilo que a torna única e diferente de tudo o que já foi feito antes, independente de seu gênero, aproximando-a muito mais de um filme de Luis Buñuel ou de um quadro de Salvador Dalí do que a algo que esperamos sair das páginas de quadrinhos dos X-Men. E, nesse quesito, o trabalho da produção é, arriscaria dizer, sem paralelo. Assistir Legion deve ser o mais próximo que o audiovisual nos permite chegar de uma experiência com alucinógenos, com cada sequência tragando-nos completamente para esse incrível e muito particular universo que não parece ter limites.
Portanto, sim, talvez a forma de Legion seja mais “gritante” que sua substância, mas isso de forma alguma deveria ser visto como demérito. Hawley efetivamente quer que mergulhemos na mente do protagonista, personagem que ele, sem cerimônia, transformou-o de herói incompreendido em vilão odioso, mesmo que seja difícil detestar Dan Stevens por completo, notadamente aqui, nesse episódio, com seu figurino hippie e olhar perdido, como se fosse a pessoa mais inocente do mundo. Hawley precisa nos colocar cúmplices de seu personagem justamente por isso e, considerando os vastos poderes mentais de David, a melhor maneira de fazer isso é transportar a narrativa para dentro de sua mente, daí decorrente as loucuras visuais que nos bombardeiam. E é justamente ao fazer isso que a substância aparece de maneira fluida e orgânica, pois o showrunners nos faz estudar exatamente a mente humana, seja ela doente ou sã. Tudo gira ao redor desse tema amplo que Hawley, por se recusar a mastigar a narrativa, a pegar na mão do espectador, pode dar a entender a alguns que a série é mesmo só um desfile de maluquices coloridas.
E isso porque nem pretendo aqui esmiuçar os detalhes do que já foi abordado antes e que é relembrado aqui. O “monstro” na mente de David, a manipulação que sofreu por décadas e, claro, o que ele fez com Syd e está agora fazendo com seus seguidores. Legion é um olhar raro e desafiador para os problemas mentais e para a violência e manipulação (ou leiam como assédio sexual e moral em várias camadas). Um estudo de personagens que não só é necessário, mas que nos é entregue de maneira subliminar exatamente por intermédio do belíssimo design de produção casado com a fotografia.
Mas, voltando ao episódio sob análise por um momento, depois do enorme desvio que fiz, mas que achei relevante, ele efetivamente parece apenas um prólogo para o que está por vir. A introdução de Switch é uma maravilha, especialmente a forma como a viagem no tempo é representada, de maneira simples, mas perfeita, com a noção de limitações impostas pelos tais “monstros temporais” e ela funciona como o veículo do próprio espectador para ouvir de David aquilo que é necessário saber para o que virá adiante. Foi um sofisticadíssimo resumo do que veio antes que serviu para ratificar o nível de poder de David e, claro, acrescentar a isso a manipulação temporal, tornando-o invencível a ponto de até mesmo o Rei das Sombras tremer nas bases. E, claro, em meio a isso tudo, ainda pudemos ver uma Syd vingativa, com sangue nos olhos e a versão cibernética de Ptonomy, agora fundido ao Mainframe.
Legion é forma E substância. Uma série que desde já deixará saudades. Que venham mais sandices maravilhosas da mente certamente perturbada de Noah Hawley.
Legion – 3X01: Chapter 20 (EUA – 24 de junho de 2019)
Showrunner: Noah Hawley
Direção: Andrew Stanton
Roteiro: Noah Hawley, Nathaniel Halpern
Elenco: Dan Stevens, Rachel Keller, Aubrey Plaza, Bill Irwin, Navid Negahban, Jemaine Clement, Jeremie Harris, Amber Midthunder, Hamish Linklater, Jean Smart, David Selby, Jelly Howie, Brittney Parker Rose, Lexa Gluck, Marc Oka, Lauren Tsai
Duração: 51 min.