Obs: Há spoilers. Leia, aqui, as críticas dos episódios anteriores.
No episódio mais curto da temporada, Noah Hawley solta sua criatividade completamente em um roteiro – escrito por Jennifer Yale – que consegue reunir a estética de filme de zumbi com fotografia em preto e branco, inter títulos de filme mudo, sequências em animação, meta-linguagem (e meta-meta-linguagem) e, claro, um clímax ao som de Bolero, de Ravel. Ou seja, é uma impressionante salada visual e sonora que, porém, faz completo sentido quando tudo acaba.
Começando com uma perseguição pelo O Olho a Kerry digna de filme de terror que engata em uma espécie de sala de controle mental do parasita, que nos leva a um flashback para a “origem” de David, ou melhor, para o dia de sua adoção em que vemos de relance uma famosa cadeira de rodas, o episódio caminha, perigosamente, em seguida, para uma longa sequência expositiva. Nela, vemos um diálogo didático entre Oliver e Cary em que todas as nossas suspeitas sobre a identidade do monstro dentro de David Haller é confirmada – sim, trata-se de outro mutante dos quadrinhos, Amahl Farouk, mais conhecido como o Rei das Sombras – e há indícios de que o roteiro, para permitir o encerramento da temporada de forma redonda, recorrerá a uma estrutura mais rígida, mais be-a-bá.
Mas os indícios logo desaparecem, abrindo espaço para a experimentação pura a partir do ponto em que percebemos que essa conversa no “cubo de gelo flutuante” do plano astral de Oliver é, na verdade, mais um flashback para logo antes do resgate de Syd por Cary usando Júlio Verne, o aptamente batizado escafandro de Oliver, que vimos ao final do episódio anterior. Uma missão então, é montada, com Syd de um lado tentando distrair Lenny/Rei das Sombras nas ruínas zumbizadas e em preto-e-branco de Clockworks e Cary, Melanie e Oliver lidando com o potencialmente mortal momento paralisado no tempo.
Chega a ser difícil descrever o que acontece e confesso que não vale o esforço de tentar. Afinal, o que marca Legion e a separa da grande maioria das séries de TV hoje em andamento é o bombardeio audiovisual constante, que deslumbra, choca e até mesmo incomoda o espectador. Já tivemos momentos sem som que, aqui, são repetidos, mas só que na estrutura de filmes mudos, já tivemos horror que, aqui, ganha ares de filmes de serial killer e já tivemos demonstrações dos poderes de David que, aqui, se manifestam como seu doppelganger racional e lógico, além de britânico, claro, o que nos leva aliás, à meta-linguagem. Afinal, não só vemos o protagonista contando para ele mesmo o que está acontecendo, como também Dan Stevens, ator britânico, usando sua verdadeira voz para falar para sua versão americana falsa na vida real que ela é a verdadeira para os efeitos da série (com direito à meta-meta-linguagem da versão americana de David soltando, com o sotaque britânico típico de um certo ator careca que já foi comandante da Enterprise, um “Sweetheart, it’s over. I won. Give me some sugar.”).
É, nesse ponto, que temos que fazer uma pausa e realmente apreciar o trabalho de roteiro e direção, além de, é claro, o controle geral de Hawley sobre essa viagem lisérgica. Dentro do cantinho confinado da mente de David onde ele se encontra, sua versão calma e tranquila surge para fazê-lo mais uma vez criar – como uma matriosca – outra realidade dentro da realidade (ou seria irrealidade dentro da irrealidade?). E, com isso, somos arremessados para uma sala de aula e o show de animação, que funciona como reiteração do diálogo entre Oliver e Cary, mas também reúne todas as demais peças desse quebra-cabeça, começa.
Em diversas circunstâncias, explicações detalhadas cansam o espectador e são maneiras normalmente falhas do roteirista e diretor consertarem problemas narrativos do filme, muitas vezes subestimando quem os assiste. São momentos como o rabisco no papel em Interestelar ou o epílogo de Psicose que param tudo para narrar o que raios está acontecendo. Em Chapter 7, a roteirista usa essa falha, ou melhor, essa necessidade narrativa para sim, parar tudo que está acontecendo, mas, ao mesmo tempo, para brindar-nos com uma espetacular forma de contar os eventos que levaram o Rei das Sombras a tomar posse de David Haller quando bebê. Se a cadeira de rodas alguns minutos antes foi aquele tipo de pista “piscou, perdeu” sobre o pai do futuro Legião, a animação “com giz” nos quadros negros nos faz ver Charles Xavier pela primeira na série, ainda que não exatamente como imaginávamos. Mas se a série nos ensinou alguma coisa foi a não esperar o óbvio, não é mesmo?
Assim, aquele “pai careca” com “poderes psíquicos” finalmente toma forma diante de nossos olhos e tudo então se encaixa. David está realmente doente, mas sua doença é um parasita mutante que planeja tomar seu corpo super-poderoso para não só se vingar de Xavier, mas, também, potencialmente, dominar o mundo. Uma trama bem “história em quadrinhos” dentro de uma série muito longe de ser do gênero de super-heróis. No final das contas, ganhamos nós, espectadores, pelo inusitado da coisa e ganha Hawley, que mantém seu estilo intacto, apesar de entregar aquilo que de certa forma se espera de algo passado no universo mutante da Fox (e não, não importa se o que vemos aqui porventura não se encaixar na confusa cronologia dos filmes – e confesso que espero que nunca se encaixe).
Mas o capítulo é cheio de pontos altos. Na verdade, com exceção da extensão das cenas expositivas, ele é, praticamente, um grande ponto alto único. Assim, outro momento que merece destaque é a sequência climática ao som de Ravel, primeiro na sua forma clássica e, depois, em um arranjo eletrônico raivoso que condiz com a escalada dos acontecimentos. A música é usada de forma diegética como barreira psíquica para balas (repararam na palavra shield – escudo – formada pelas letras esvoaçantes saídas da batuta de Oliver?) e também não diegética para trabalhar o suspense para nós, que somos jogados de sequência em sequência em uma montagem paralela de três movimentos: Syd e Kerry em Clockworks, a ação paralisada na casa dos Haller e a fuga de David de sua prisão mental.
O de certa forma estendido epílogo tem a função orgânica de lidar com algumas relações importantes – Kerry e Cary, Oliver e Melanie, David e Amy – que também servirão de trampolim para o capítulo final e, potencialmente, para a próxima temporada, já que, mais imediatamente, a equipe terá que lidar com a Divisão Três, a volta do Interrogador (Hamish Linklater) e, logicamente, o furioso Rei das Sombras. Ufa, foi informação demais em todas as frentes dessa vez, não?
Legion – 1X07: Chapter 7 (EUA – 22 de março de 2017)
Showrunner: Noah Hawley
Direção: Dennie Gordon
Roteiro: Jennifer Yale
Elenco: Dan Stevens, Rachel Keller, Aubrey Plaza, Bill Irwin, Jeremie Harris, Amber Midthunder, Katie Aselton, Jean Smart, Mackenzie Gray, Jemaine Clement, Hamish Linklater
Duração: 46 min.