Há uma frase atribuída ao legado aristotélico que define muito o desenvolvimento irônico de Legalmente Loira. “O Direito é a razão livre das paixões”. Salvaguardadas as devidas proporções, obviamente, esta menção filosófica, realizada numa das cenas desta comédia, define a travessia da carismática a exagerada personagem interpretada por Reese Whiterspoon, a “patricinha cor de rosa” Elle Woods, uma jovem que vive as futilidades do mundo consumista, preocupada com maquiagem, figurinos e outras discussões consideradas menores para o seu namorado, Warner (Matthew Davis), jovem homem que consegue ser aprovado em Harvard para cursar Direito e seguir, futuramente, conforme estabelecido em seu plano de carreira, as vias da política. Mas, para isso, ele precisa de uma Jackie Kennedy ao seu lado, não o arquétipo da Marilyn Monroe. Será preciso encerrar a relação. O que supostamente seria um jantar, na abertura, de pedido de noivado se transforma na divertida cena de término. Humilhante, intensa e histérica. É assim que os conflitos da trama dirigida por Robert Luketic começam.
Escrita por Karen McCulhah, a comédia lançada em 2001 vai acompanhar a busca da moça por aceitação. Ela, agora em busca de recuperar o namorado padrão perdido, decide estudar firme e entrar em Harvard, tendo em vista comprovar que vai além dos estereótipos que ela mesma construiu sobre si mesma, aquele infame olhar da loira peituda fútil, preocupada com os fios de cabelo e as unhas em dia. A batalha pela aprovação é dinâmica e o seu vídeo de apresentação, icônico e recebido por avaliadores homens, é pura ironia. Ela consegue. Elle Woods adentra o curso de Direito de uma das instituições acadêmicas mais formais e respeitadas não apenas nos Estados Unidos, mas referência no mundo todo. Ao chegar com sua postura de rica gente boa e mulher que pretende ser levada a sério, mesmo com todo seu universo “cor de rosa kitsch”, Wood se transforma numa piada. É rejeitada por quase todos. Inclusive, descobre que o seu namorado já possui um novo interesse amoroso, a inteligente e ácida Vivian Kessing (Selma Blair).
Arrasada, a loira se estrutura na amizade com a manicure Paulette (Jennifer Coolidge) para conseguir se manter um pouco mais animada. Mas, com o tempo, descobre que será preciso focar nos estudos e ser uma das melhores da turma para alcançar os seus objetivos. Aos poucos, deixa de lado, gradativamente, o seu foco em Warner, descobrindo na caminhada o seu potencial para a empatia, conquistando a todos, inclusive a nós, espectadores. Os dias de Irmandade, dancinhas, dicas de roupas e penteados não ficam exatamente para trás, mas integram a nova postura de Elle Woods, uma jovem que se encontra também na intelectualidade, não transformando isso em uma nota de corte para as suas amizades, o que faz de sua personagem alguém com muita graça e brilho. Faltam, sim, obstáculos mais coesos para a trajetória da protagonista ser considerada dramaticamente mais interessante, mas isso não atrapalha o filme.
Quando se encontra diante da oportunidade de defender Brooke (Ali Larter), uma cliente peculiar, a jogada se modifica e a personagem se desenvolve ainda mais. É o seu momento, responsável por transforma-la numa referência para todos aqueles que gravitam ao seu redor. Além da caminhada profissional, Elle também tem a oportunidade de repensar a sua vida pessoal, em especial, com a chegada de Emmett (Luke Wilson), um homem mais experiente na instituição, alguém que conquistará seu coração antes do final da jornada de 96 minutos repleta de risadas e situações constrangedoras. Ao reciclar piadas de outros filmes, como a cena da festa a fantasia que emula O Diário de Bridget Jones, Legalmente Loira versa sobre o “direito das patricinhas”, deixando de lado o quesito originalidade para lidar com o gênero que na época ainda estava em alta, mas que aos poucos foi mirrando, mesmo que ainda seja expressivo na era dos streamings: a comédia romântica. Na estética, por sinal, os seus ideais dramáticos ganham tonalidades em rosa de todo tipo, contemplados pelo design de produção de Missy Stewart e figurinos de Sophie De Rakoff, registrados pela eficiente direção de fotografia de Anthony B. Richmond.
Alçado ao posto de símbolo feminista ao longo dos anos, Legalmente Loira sobreviveu ao tempo e mais de duas décadas após o seu lançamento, se demonstra como uma narrativa de amplo legado e impacto cultural. Talvez por seus debates e reflexões sobre sororidade, algo muito em voga na contemporaneidade. Não é, nem de longe, um grande filme nos quesitos dramáticos, tampouco estéticos, mas consegue criar uma história cativante que mesmo desequilibrada no jogo das ironias, funciona efetivamente. É uma jornada engraçada, deliciosamente clichê, mas com uma mensagem edificante que nos toca de alguma forma. Tudo bem que a irmandade, bem como a maioria das cenas, nos faz acreditar que o mundo de Legalmente Loira é habitado apenas por pessoas brancas, mas o problema contextual não estraga o mote geral da trama: uma história sobre otimismo, crença em nosso potencial e força para driblar crises sistemáticas estruturais. Uma narrativa que se destaca como uma daquelas pequenas preciosidades de uma época específica da história do cinema recente. Recomendado para aqueles que prezam por jornadas de autoconhecimento e mudança de perspectiva.
Legalmente Loira (Legally Blonde, EUA, 2001)
Direção: Robert Luketic
Roteiro: Karen McCullah , Kirsten Smith
Elenco: Reese Witherspoon, Luke Wilson, Selma Blair, Matthew Davis, Jennifer Coolidge, Ali Larter, Holland Taylor, Jessica Cauffiel, Alanna Ubach, Oz Perkins, Raquel Welch
Duração: 96 min.