Ler histórias ambientadas no Japão dos samurais não raramente nos deixa em um estado de consternação, até mesmo de raiva para com determinados códigos de uma civilização que não é a nossa, em um tempo que não nos pertence. Claro que o argumento pode ser aplicado a qualquer organização comportamental de massa em qualquer sociedade através da História, mas penso que o Japão transformou essa linha de ação em algo imensamente poderoso. Um rigoroso código de honra e conduta para os mais diferentes cargos político-sociais, especialmente para samurais e ronins, o que não raramente levava a situações de tremenda injustiça, como as que vemos nessa fantástica aventura da série Le Storie, intitulada A Rendição do Samurai.
Ambientada no século XVII, a trama escrita por Roberto Recchioni e desenhada por Andrea Accardi nos faz acompanhar o jovem Tetsuo, encarregado de ir em busca de seu mestre Jubei, que caiu em desonra. No início do quadrinho, não nos é explicado o porquê desse samurai ser condenado a cometer o seppuku. A tensão das primeiras páginas é grande e faz surgir aquela sensação de injustiça que citei acima, considerando aí todos os elementos antropológicos e históricos ligados ao momento. É evidente que procuramos olhar para esse tipo de situação com olhos críticos e não-anacrônicos; mas não dá para simplesmente ignorar o absurdo (do nosso ponto de vista) dessas “leis de honra“, onde o “acusado” não tinha sequer a possibilidade de ser ouvido, de se explicar. A ordem era para realizar o ritual suicida reservado à classe guerreira e ponto final.
O roteirista porém, quebra um pouco a expectativa, fazendo com que Tetsuo seja poupado de se sacrificar para salvar a honra (uma vez que seu mestre não apareceu para o ritual, a desonra acabou caindo sobre o seu discípulo), mas com uma condição: deve procurar o seu Mestre… ou morrer tentando. A saga começa nesta caminhada. A arte de Andrea Accardi, inicialmente exposta em um espaço fechado e planos mais simples, passa a mostrar toda a sua glória, com exibição de paisagens belíssimas e um aplaudível senso de movimento dos personagens e dos mais diversos elementos da natureza, uma característica essencial para as aventuras chambara e que também vemos abundantemente nos mangás do gênero. Acompanhar Tetsuo pelas matas e colinas ou vê-lo ao lado de um velho que, mais adiante, descobrimos tratar-se de alguém muito importante na ficção literária japonesa sobre samurais é um bálsamo para os olhos. E também para a mente, porque os diálogos de Recchioni nos fazem refletir o tempo inteiro sobre situações de corrupção política com efeitos mortais para a camada pobre da sociedade, como sempre.
A progressão da narrativa é muito respeitosa com os elementos sociais necessários para que essas histórias encontrem sentido. Os autores não fizeram dela uma versão leve de um problema complexo, muito pelo contrário. O combate à corrupção de um dos administradores do clã, o sequestro de crianças e mulheres para trabalharem como escravas nas casas de prostituição e a revolta de um samurai contra a cobrança de impostos a camponeses miseráveis não são encobertos, aliviados ou minimizados. E nem a punição, a “dívida de honra” que Jubei tinha. Nesse aspecto, o final da saga é triste, mas ao mesmo tempo traz um marcante caminho de esperança para os habitantes das vilas antes exploradas pelos bandidos. Como em muitos momentos da História, a morte de pessoas corretas (num sentido jurídico e ético); de pessoas que quiseram fazer valer a justiça, parece ter sido a chave necessária para abrir as portas de tempos melhores.
Le Storie – Vol.2: A Redenção do Samurai (La redenzione del samurai) — Itália, novembro de 2012
Roteiro: Roberto Recchioni
Arte: Andrea Accardi
Capa: Aldo Di Gennaro
117 páginas