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Crítica | Lavoura Arcaica (2001)

por Luiz Santiago
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estrelas 5,0

SPOILERS!

A produção difícil de Lavoura Arcaica (2001), longa de estreia de Luiz Fernando Carvalho, é bastante conhecida. O corte inicial do filme possuía 3h40, diminuído em uma hora para uma “versão comercial”, que obviamente clamava por um filme menor. O impasse mais curioso veio do Canal Plus, rede francesa que se interessou em co-financiar a obra juntamente com a VideoFilmes dos irmãos Salles, com peso especial na distribuição europeia. Se tivesse menos de duas horas, a obra apareceria como favorita à Palma de Ouro em Cannes (naquele ano, venceu O Quarto do Filho, de Nanni Moretti).

Depois do segundo corte, da insistência do diretor em não mexer mais na obra (apoiado pelo próprio Raduan Nassar, autor do livro adaptado) e concordância dos irmãos Salles com a opinião de Luiz Fernando Carvalho, o prazo para a inscrição do filme no Festival de Cannes foi esgotado, o financiamento do Canal Plus não aconteceu, e a opinião de alguns críticos brasileiros, pedindo que o filme não fosse mesmo inscrito, pois afastaria os votos da Academia, viu o sonho realizado. Com 2h43 minutos de duração, Lavoura Arcaica chegou aos cinemas. E arrebatou a todos os que mergulharam em sua história, mostrando que em alguns casos, o excesso programado, o perfeccionismo e a extrema fidelidade à obra original não necessariamente estragam um filme. É a forma como se manipula esses ingredientes que resulta em um bom ou mal produto. No caso de Lavoura Arcaica, o resultado é uma obra-prima.

André (Selton Mello) é o foco do enredo. Ele representa o filho pródigo que deixa a casa vazia, triste, quando resolve fugir ao julgo do pai e do marasmo da fazenda onde mora. De família libanesa, onde o patriarca, interpretado de maneira soberba por Raul Cortez, administra a vida de todos em forte vigilância moral e valores demasiadamente arcaicos, André percebe que não há lugar para ele, o sujo, o epilético, o filho da “febre nos pés” naquele lugar. Ele é o filho que possui um desejo incestuoso pela irmã, chegando a realizá-lo, em uma espécie de “milagre divino da carne”, que serve tanto como descarga de sua libido, quanto como afronta a tudo o que o opressivo pai construiu e valorizou a vida inteira.

Assim como no livro de Raduan Nassar, o roteiro de Lavoura Arcaica não possui uma narrativa linear. Ele se constrói a partir do encontro de Pedro, o filho mais velho, com André, em uma pensão barata na cidade. A missão do primogênito é clara: levar André de volta para casa. Mas o retorno não vem rápido. O autor e o diretor nos coloca todos os motivos pelos quais “o possuído” fomentou uma vontade cada vez maior de arrancar um pedaço do seio da família e, mesmo sangrando, viver longe, bebendo vinho barato, lembrando da irmã, se masturbando — o sexo, para André, é uma fuga — e deixando a desesperança lhe corroer os dias. Para não enlouquecer [mais?] André precisou sair da fazenda. Contudo, longe dela, sua vida parece não ter sentido. O dilema do êxodo rural some e dá lugar a um dilema filosófico de identidade e pertencimento, representados com uma intensidade alucinante por Selton Mello, em um de seus melhores papeis.

O elenco do filme passou mais de dois meses convivendo em uma fazenda no interior de Minas Gerais, local onde o filme foi rodado. O comportamento campesino, os hábitos e trabalho da fazenda, a atmosfera do filme são um braço dessa entrega dos atores, todos eles excelentes, mesmo quando não pronunciam uma única palavra, como é o caso de Simone Spoladore, a irmã-objeto de desejo de André; ou que tem apenas uma cena de destaque, como é o caso de Caio Blat, o irmão mais novo que o roteiro sugere também ser um outro lado incestuoso do protagonista. Até mesmo o elenco infantil se destaca, e é preciso aqui fazer menção a uma das mais louváveis metáforas visuais e narrativas da fita, editada em paralelismo, quando vemos André ainda criança, fazendo uma armadilha para pegar uma pomba branca e André jovem, fazendo um jogo de sedução em seu (primeiro?) encontro sexual com a irmã.

O diretor de fotografia Walter Carvalho (que naquele ano ainda teria um outro grande trabalho lançado, Abril Despedaçado) usou todo tipo de artifício para mostrar as perturbações de André, a covardia de Pedro, o erotismo poético de Ana e a placidez de “coadjuvantes familiares” dos outros irmãos e da mãe, socialmente colocada como uma “doença servidora”, como o próprio roteiro indica e como vemos pela posição de seu lugar à mesa. Distorções da imagem, saturação ou filtro que lembram bastante alguns exercícios de Aleksandr Sokúrov são vistos toda vez que André volta à cena, depois de uma reflexão somada a cenas do passado. Nesse caso, há um choque muito bem vindo através da imagem, onde os tons térreos são sempre destacados nos espaços da casa e a saturação para o branco ou destaque do verde são majoritários nos ambientes externos.

Através da repetição, em diferentes arranjos, da ária Erbarme Dich, Mein Gott (da Paixão Segundo S. Mateus, de Bach) e uma trilha sonora que mistura clássicos com música libanesa, o espectador e os personagens são levados como se fossem folhas soltas, ora dançando, ora planando ao vento, atravessando o tempo de forma irregular, indo de uma memória a outra, mergulhando na infância, escorrendo pela adolescência e se arrastando no presente, tentando fazer a dor mais íntima ser entendida por um irmão; tentando fazer o pai entender que certas regras são uma forma de escravidão. A cena em que André e o pai conversam, após o retorno, é um dos momentos mais intensos do filme, com interpretações de tirar o fôlego de Mello  Cortez. Outro grande destaque é a sequência de André e Ana na igreja. Sem uma única palavra, Simone Spoladore consegue coisas grandiosas, servindo de perfeito contraste para outro monólogo catártico de Selton Mello.

Lavoura Arcaica é uma pérola do cinema brasileiro. Um filme sobre as muitas vertentes de uma família, sobre os malefícios de um código moral cego, travestido de tradição, de identidade familiar, e sobre uma alma perturbada, sem lugar entre os seus, procurando paz. Alguns minutos poderiam ser cortados, mas eles não aparecem encaixados na obra. Tudo ali tem razão de existir. O cenário é lentamente explorado e a alma dos personagens lentamente dissecada. Até que os ânimos venham à tona, numa explosão confusa de sentimentos, e, como punição pela sinceridade expressada, surja a castração da felicidade (ou do desespero?) no duro e inesquecível golpe final. Como a colheita, feita no melhor momento do fruto. Como um hábito de séculos na lavoura arcaica da maioria de nossas famílias.

Lavoura Arcaica (Brasil, 2001)
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Roteiro: Luiz Fernando Carvalho (baseado na obra de Raduan Nassar)
Elenco: Selton Mello, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha, Simone Spoladore, Leonardo Medeiros, Caio Blat, Denise Del Vecchio
Duração: 163 min.

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