Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Laura (1944)

Crítica | Laura (1944)

Um noir romântico sobre o culto de sua femme fatale.

por César Barzine
334 views

Poucas femme fatales são tão marcantes quanto Laura, de Gene Tierney — não à toa seu nome é também o título do filme. Isso se deve a três fatores: o amadurecimento que a personagem toma, a aura quase divina que ela vai recebendo e os romances retratados em torno dela. O romance adquire, aqui, um papel de destaque entre os filmes noir. Casos românticos entre o protagonista durão e a femme fatale sensualmente sombria são uma forte característica desse  estilo, mas a dimensão que o romantismo toma nessa obra em particular alcança um elevado patamar de outras produções do noir, tais como No Silencio da Noite e Almas Perversas. Pegamos, a título de comparação, um outro grande noir lançado neste mesmo ano (1944), Pacto de Sangue. O romance está lá, ele é claro e possui destaque na trama, porém ele existe apenas em função dessa  história. É um meio para a produção do noir, e não um aspecto de valor per se. Em Laura, apesar do romance estar essencialmente atrelado ao desenvolvimento da trama, ele não é somente causa necessária, como também é uma causa autônoma. O plot point e o crime em questão (elemento central do noir) têm o romance como seu objeto principal, não como uma ponte entre eles.

Toda essa articulação entre gêneros é a base para a aura mística que a personagem Laura vai ganhando. Chama atenção como, de início, ela é apresentada na forma de uma jovem meiga quase vulnerável que é intimidada pelo seu futuro companheiro para, logo depois, acabar perdendo um pouco de sua inocência e virar não um objeto de ataques hierárquicos, mas uma promotora de cobiça e de submissão. O desenvolvimento da personagem acaba sendo, na realidade, o desenvolvimento do que está à sua volta — no caso, seu parceiro e antigo desafeto Waldo. O que começa como uma relação de poder unidimensional (ele esnobando ela) acaba se prendendo a uma rede de paixões regada de traições, apegos, obsessões e loucura. Mas nem só com Waldo o coração de Laura se conecta, simplesmente todos os homens com algum destaque no filme se apaixonam por ela e ela por eles. A moça é o grande alvo de desejo e de apreço de todos eles e, na condição em que é objeto, torna-se também sujeito.

Acaba sendo sujeito por, mais uma vez, construir seu núcleo por aquilo que está ao seu redor. Na medida em que é cobiçada, acaba virando uma figura mística, colocando-se possivelmente como a mais forte das femme fatales na história do noir. No entanto, não é só a sua presença a razão desse misticismo, a ausência de Laura é um ponto de destaque justamente pela força de sua figura, mesmo que fisicamente inexistente. O cerne da trama, ao menos na primeira metade, é a investigação de seu assassinato. Ocorre, então, o paralelo entre a sua presença por via dos flashbacks que retratam o passado com Waldo e a sua ausência por meio das investigações de Mark. O questionamento de quem matou Laura persegue e prende o espectador com enorme precisão, da melhor forma que todo bom thriller policial deve ter. E tudo isso fica ainda mais intenso quando esse mesmo questionamento é subvertido: inverte a questão da ausência de Laura a partir de um excelente plot twist no meio da trama — elevando também a já citada atmosfera mística que a protagonista possui.

Nessa segunda metade após essa revelação, a trama acaba tornando-se ainda mais intrigante. Os elementos de estranheza e de suspeita dominam a mente do espectador e de Mark. Aquilo que era apenas um problema investigativo de polícia vira também um problema de lógica duplamente misterioso. O roteiro torna-se extremamente habilidoso ao estimular o raciocínio do espectador com todos os questionamentos possíveis, o que leva à suspeita de todos os personagens. Há uma ampla gama de possibilidades desse  quebra-cabeça que se renova rapidamente. A história é bastante substancial ao mesmo tempo que a metragem é toda enxuta, deixando o filme bem movimentado e envolvente nos seus menos de 90 minutos. Para costurar os diversos pontos da trama e fazer Mark e o público chegarem à resolução do mistério, o roteiro planta uma série de McGuffins que vão servir de indícios para descobrirmos ou nos confundirmos sobre quem é o grande criminoso da história. Indícios como uma picareta, um relógio, um whisky e um rádio quebrado nos fazem estranhar tudo e todos. Cada objeto é um passo para a narrativa, um exame para Mark e um questionamento para o público.

Quase todo o conteúdo da trama se dá de forma meramente verbal, tendo bastante coisa sendo dita e pouca sendo mostrada. Enquanto muitos thrillers se projetam pela apresentação explícita e construção atmosférica de certos momentos-chaves, Laura prefere trabalhar com elipses e, principalmente, com relatos, monólogos e narrações. A ação é frequentemente uma descrição. O gênero policial, como um todo, carrega essa dualidade de poder mover-se por dois caminhos opostos. Enquanto do lado do crime pode existir a exposição gráfica das ações, pois trata-se de atos físicos, o lado policial, da investigação desse crime, se pauta menos na ação e mais em ouvir e falar. Laura caminha para esta segunda direção. O crime (entre outros fatos) nunca é mostrado de forma alguma, o que abre margem não só para seu mistério, mas também para seu plot twist. Dito tudo isso, acompanhamos Mark ouvindo os relatos que podem ser as ações em si sendo expostas apenas verbalmente ou sendo ilustradas por meio de flashbacks narrados. Mark é o receptor de todas essas ações-descrições, e nós acompanhamos tudo conforme o seu andar, portanto só sabemos aquilo que ele sabe. Essa posição passiva de receptor é quebrada quando ele passa a raciocinar os pontos soltos acerca do crime; possuindo, assim, um papel de “criador” — que vai crescendo ao longo da segunda metade até chegar no clímax do final —, de dar novos caminhos ao enredo e produzir fatos que vão além do simples diálogo.

Essa abordagem verborrágica dá suporte a um roteiro frenético, habilidoso e capaz de prender, a todo momento, a atenção do público. A história é completamente ágil e intrigante, este sucesso, além do roteiro, é acompanhado pelo trabalho de montagem, que deixa a obra bastante engenhosa e enxuta — lembrando da curta duração, de 88 minutos — ao mesmo tempo. A economia é um elemento que se encontra também nos cenários, havendo pouquíssimos deles. Basicamente, as situações do filme se dão em dois ou três apartamentos e mais algumas poucas áreas externas. A extensão na questão verborrágica ao lado dos espaços limitados são dois fortes aspectos do noir que dão um tom teatral e minucioso ao filme. No entanto, não dá pra falar em um completo minimalismo, pois o longa possui destaque para uma design de produção suntuoso, com cenários decorados de forma aristocrática e luxuosa — a presença de mil e um objetos nas salas de estar escancaram isso — e um figurino, por parte de Gene Tierney, sempre belo e charmoso, o qual indica as mudanças de sua persona, que é salientada em seus instantes mais maduros.

Devido a essa versatilidade, a interpretação de Tierney é digna de elogios: sua Laura é única e variada ao mesmo tempo. Enquanto isso, o personagem de Dana Andrews é sempre o mesmo, bancando o clássico galã frio, meio engessado e com faíscas sentimentais de boa parte do noir. Por fim, a atuação que chega a um patamar mais intenso é a de Clifton Webb, que vive Waldo. Se Mark é sempre o mesmo, a personalidade Waldo se inverte completamente. Em sua nova fase, transforma atração em devoção, chegando a um ponto completamente dramático em seu personagem e em sua atuação. Em contraste ao falatório do filme, a direção de Otto Preminger possui seus pontos altos em alguns instantes bastantes específicos de breve contemplação. O uso de close, zoom-in e zoom-out em algumas partes dos personagens masculinos reflexivos com seus atritos são um belo retrato da introspecção daqueles homens.

Laura é um dos casos raros no cinema noir em que uma mulher é o seu principal polo. Mais do que simplesmente ser a protagonista, ela é a alma do filme, um alvo de fascínio e culto. Torna-se uma figura quase mitológica, seja viva ou morta. Boa parte desse deslumbramento aos olhos do público se extrai mais pelo sentimento por ela despertado nos demais personagens do que nela própria. A moça passa a conquistar, sem nenhum esforço, o coração e a mente de todos os homens com quem convive. Sua aura mística é sintetizada na pintura que é o seu retrato e que é a mesma com que o filme se encerra. Indo muito além de ser sobre um crime, Laura é sobre uma mulher. Com isso, os personagens daqui misturam-se — às vezes com alternâncias, às vezes com sobreposições — entre a dureza e a fraqueza, a frieza e a paixão. Tudo com base na mesma mulher-mito.

Laura —- EUA, 1944
Direção: Otto Preminger
Roteiro: Vera Caspary (romance) Elizabeth Reinhardt, Jay Dratler, Samuel Hoffenstein
Elenco: Gene Tierney, Dana Andrews, Clifton Webb, Vincent Price, Judith Anderson, Lane Chandler, Harold Miller
Duração: 88 minutos.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais