Liavek é uma série de cinco antologias de contos de fantasia, ambientadas em um mundo compartilhado. A definição original deste Universo nos diz que Liavek é uma cidade que nunca dorme, onde os negócios fervilham sob um Sol escaldante de oportunidades. A magia permeia o ar, sendo medida numa soma de “sorte de berço” com o tempo que a mãe do indivíduo passou em trabalho de parto. Todos carregam uma faísca de sorte, um presente do universo no momento do nascimento, mas transformar essa centelha em chama é uma jornada que desafia até os mais destemidos, num jogo onde as apostas são altas e as recompensas, inimagináveis. O terceiro volume desta série, lançado no Reino Unido em 1987, teve como subtítulo Alameda dos Magos, e um dos contos que continha chamava-se A Hypothetical Lizard, escrito por Alan Moore.
SPOILERS!
Lagarto Hipotético tem a maior cara de uma narração rebuscada de RPG, mostrando-nos um cenário de fantasia e pitadas de hermetismo, com pessoas dotadas de poderes extraordinários e possibilidades inimagináveis de se exercer a força sobre os outros. A narrativa de Moore não é fácil de acompanhar, e infelizmente o autor usa uma mudança de foco que acaba cobrando um alto preço na composição geral da trama, embora não a ponto de tornar o enredo ruim. O autor começa nos apresentando à misteriosa “Casa sem Relógios”, um “espaço de entretenimento artístico e sexual” povoado por indivíduos que passaram pelas mais diversas transformações. No início do conto, acompanhamos a chegada da pequena Som-Som ao lugar, e em poucas páginas, ficamos absolutamente horrorizados com a descrição detalhada e lancinante do que é feito com essa menina, aos 9 anos de idade, para que ela se torne uma prostituta dos magos.
O enredo é repleto de informações propositalmente deixadas pela metade, incitando a curiosidade do leitor e desviando a atenção para este ou aquele personagem e lugar. Talvez por isso o miolo do texto acabe sendo cansativo, já que nele acompanhamos uma sequência de eventos e descrições metafóricas e líricas que não levam a história adiante; e também porque vemos a troca do eixo dramático, de Som-Som para um drama mais lento, envolvendo duas figuras andrógenas (sendo uma delas transsexual) que acabam protagonizando, no último bloco, um relacionamento abusivo e um crime misteriosamente hediondo que, mesmo eu tendo lido duas vezes, não consegui entender exatamente o que de fato se passou ali. Ao apresentar os abusos e as indicações que levam ao delito, o autor consegue manter o público vidrado, uma mudança e tanto depois do desenvolvimento modorrento da saga da atriz Rawra Chin e do ator (e talvez… mago?) Foral Yatt.
O flerte de Alan Moore com a magia do caos e com algo do horror cósmico deixam-nos em uma confusão de sentimentos em relação ao que ele entrega no encerramento de Lagarto Hipotético. Quando Foral Yatt começa a sua premeditada vingança, o texto ganha um novo vigor, porque existe um suspense ativo e um perigo à espreita. É nesse momento que os maus-tratos a Rawra Chin se tornam evidentes, e a dominação de Foral Yatt sobre ela chega a ponto de forçá-la a fazer sexo com uma cliente particularmente abjeta da Casa sem Relógios. A codependência desse casal, a violência psicológica e dominadora, e o fato de ambos estarem errados em diferentes momentos da trama (afinal, ela estupra ele, em dado momento) tornam esses personagens multifacetados e fazem a nossa opinião sobre eles mudar a cada nova revelação.
O que não fica claro é o objeto final da vingança de Foral Yatt. A impressão que eu tive, é que Rawra Chin tomou o veneno da caveira, mas só o seu corpo morreu: sua alma ficou presa na bola onde o lagarto hipotético estava. Mas isso é apenas um chute interpretativo, aliado à ideia de que o autor dificilmente faria um estardalhaço com o tal presente, inclusive colocando-o como título do conto, para que não tivesse uma importância essencial no enredo. Entretanto, o final da história tem uma exposição tão reticente (e parcialmente truncada), que não dá para ter certeza de muita coisa — se alguém entendeu o tal “crime indescritível” ali cometido, por favor, sinta-se à vontade para compartilhar suas impressões nos comentários abaixo.
É enraivecedor o fato de que o ator assassino simplesmente executou a sua vingança e fugiu na carruagem de Rawra Chin, provavelmente assumindo um papel de destaque no ramo da dramaturgia. Talvez o conto tivesse um melhor encaminhamento se Alan Moore apenas assumisse o casal desde o início, ou construísse o suspense mais cedo, sem colocar os pés em veredas mágicas que não se completam e afastam o leitor daquilo que verdadeiramente importa. A grande dúvida, porém, fica no ar. Som-Som viu algo tão imensamente inexplicável (lembra as não-definições de Lovecraft para suas criaturas, não?), que ficou completamente abalada. O fato de não ter a percepção completa das coisas e não poder se comunicar, deixa o crime sem resolução (mesmo com uma testemunha), já que ela foi moldada exatamente para não contar segredos. No fim, uma última crueldade do ator abandonado que não concebia viver sem a mulher que iria deixá-lo pela segunda vez… de vez.
Lagarto Hipotético (Hypothetical Lizard) — Reino Unido, 1987
Autor: Alan Moore
Publicação original: Liavek #3: Wizard’s Row
Editora original: Ace Books
Edição lida para esta crítica: Iluminações (Editora Aleph, 2022)
Tradução: Adriano Scandolara
Número de páginas do conto: 51