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Crítica | Laerte-se

por Luiz Santiago
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Laerte-se (2017) é o primeiro documentário brasileiro produzido pela Netflix e acompanha a cartunista e chargista paulistana Laerte Coutinho, criadora de icônicos personagens como o super-herói Overman; o onipotente Deus; os Piratas do Tietê; o modernoso e trágico Hugo Baracchini; a menininha Suriá e o crossdresser Muriel/Hugo. Aos 58 anos de idade (em 2009), Laerte assumiu sua sua transgeneridade, ou algo perto disso, já que ela afirma estar “sob um guarda-chuva que inclui a travesti, o crossdresser, a drag queen, o drag king” e que se sente feliz com isso; em um processo reflexivo que vinha sendo “cozinhado” — inclusive com uma série de dicas e talvez sublimações nada sutis em suas tirinhas — desde 2004.

De 2009 em diante, a artista começou a frequentar espaços e a debater sobre questões e papeis de gênero e colocações sociais, discussões que sempre vieram acompanhadas de polêmicas dentro e fora do Movimento Transexual. Em 2012, juntamente com a advogada Márcia Rocha, a atriz Maitê Schneider e a psicanalista Letícia Lanz, Laerte fundou a Associação Brasileira de Transgêneros (ABRAT), sendo a partir de então uma das vozes publicamente mais presentes ao se falar de gênero no Brasil, especialmente porque tendo assumido sua representação quase aos 60 anos, ela teve que lidar com todo o público que já conhecia o seu trabalho, mais a família, o fato de ter tido três casamentos e três filhos, ter neto, pais vivos e, claro, a exposição e condenação sociais sempre imensas.

Todavia, o documentário de Lygia Barbosa e Eliane Brum não tem esse peso em sua base. O enredo nos traz uma leve sequência de conversas com Laerte, trechos animados de suas tirinhas que discutem o papel do homem e da mulher na sociedade, trechos de eventos, entrevistas para outros canais e mídias, parte de um ensaio fotográfico (incluindo nu), momentos com o filho e o neto e outras cenas particulares do cotidiano da paulistana, que se desnuda, comenta do processo de mudança, da forma ainda complicada e sem muitas respostas como ela se vê; e a própria averiguação — em conjunto com a diretora e o público — dos meios de se olhar para os seres humanos, para além de uma visão que alguns possuem da biologia, como ditame engessado do faz de nós, nós mesmos.

As questões de gênero ganharam espaço na mídia (vou dizer brasileira, mas na última década, tem sido um debate em muitos países do mundo, certamente na maioria dos países Ocidentais) graças ao lado negacionista e não disposto ao diálogo com elas, mas mesmo assim, tem sido um movimento que ganha luz e versões para debate, o que é ótimo para quem realmente quer entender e conversar sobre o tema. Para quem só está disposto a pré-taxá-lo e odiá-lo, nada pode ser feito. Esta é a sensação que temos ao assistir a Laerte-se. Mesmo que em termos de narrativa o filme seja um pouco bagunçado e no meio tenha inserções incoerentes da situação do Brasil nos últimos dois anos… um pouco em detrimento das questão da própria Laerte, há um convite para o debate, para a refiguração de conceitos e papéis, isso vindo da própria pessoa documentada, às vezes como provocações, às vezes como entrega de uma interrogação dela mesma.

O dinamismo das conversas, a correta exploração do silêncio e a exploração de crises existenciais de Laerte valem todo o longa. Para espectadores menos familiarizados ou enraivecidos (por algum motivo) com o tema, o filme exigirá um imenso deslocamento da zana de conforto e um convite à reflexão. Nessa sopa de ideias (com uma trilha sonora mais intrusiva do que deveria), o espectador encontrará o fazer artístico agarrado às difusas aquarelas da vida de uma pessoa em transformação, em ebulição de ideias, em uma demonstração de força, fraqueza e honestidade humanas com o seu próprio ser. Nesse cenário é que cabe falar sobre qualquer uma das aplicações de gênero a Laerte (como ela mesmo disse: “ele ou ela, tanto faz“) e a qualquer pessoa que se enxergue de maneira diferente ao que dita as normas sociais de comportamento que recebeu, como um tipo de Destino Manifesto. Aqui, e na vida, você está livre para laertear-se como quiser. Ao fim, se não podem amar, aceitar ou querer entender, o que se pede é que ao menos respeite o outro ser humano à sua frente. Isso não é tudo, mas para o bem da boa convivência, basta.

Laerte-se (Brasil, 2017)
Direção: Lygia Barbosa, Eliane Brum
Roteiro: Raphael Scire, Lygia Barbosa da Silva, Eliane Brum (com a colaboração de Nani Garcia)
Elenco: Laerte Coutinho
Duração: 100 min.

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