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Crítica | Ladrões de Bicicletas

por Gabriel Carvalho
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“Por que me matar me preocupando se eu vou terminar morto de qualquer forma?”

SPOILERS!

Uma mulher pobre carrega, com consideráveis dificuldades, um balde cheio de água e a câmera de cinema, mas não qualquer cinema, a acompanha, enquanto a personagem, ao mesmo tempo, ainda interage com o seu marido, recém-chegado no ambiente em questão, um espaço em grande escala, rico de minúcias aparentemente insignificantes então evidenciadas intencionalmente pelo cineasta Vittorio De Sica. O exercício à narrativa, pretendido com essa pequena cena, conversando objetivamente com o enredo contado na superfície, acerca de um homem que, em primeira instância, precisa recuperar a sua bicicleta penhorada porque um trabalho oferecido necessita da urgente posse desse meio de transporte, está extremamente conjugado à composição quase documentária da mesma realidade retratada pelo artista, ou seja, as inúmeras desventuras da sociedade italiana pós-guerra, tão perdida quanto o olhar cabisbaixo e derrotado do seu protagonista, uma pessoa como qualquer outra, que nem pode ser chamada de vencedora, muito pelo contrário, consciente da sua derrota por excelência. Os heróis de um novo cinema que são mais anti-heróis que qualquer outra coisa, enxergados, paralelamente, como antagonistas de uma sociedade que é injusta com os sempre justos e também com os injustos que uma hora foram mediados por algum princípio de justiça, porque a finalidade nunca é a vitória, contudo, a derrota.

A continuidade do outro mundo, comum, com pessoas se amontoando à procura de trabalho, pessoas realizando os seus afazeres domésticos, é paralela a esse pretexto de narrativa, mas não passou pelas mãos manipuláveis de artistas de cinema. Os roteiristas encaminham-se, em decorrência disso, para muito mais além do texto proferido pelos atores que interpretam os personagens. Os cenários são reais, as pessoas verdadeiras – muitas locações foram usadas, por causa do pequeno orçamento. O ordinário mostra-se imensamente importante para uma compreensão completa de contexto de época, apesar de uma situação supostamente especial – o consequente roubo à bicicleta readquirida pelo protagonista – justamente movimentar a premissa. O crime, no entanto, torna-se tão ou mais banal quanto a cena da criança arejando a bicicleta do seu pai, em preparo para um esperançoso primeiríssimo dia de trabalho, às margens da decadência inconsolada ser consolidada. O nome da obra, Ladrões de Bicicletas, não está no plural por qualquer outro motivo que não seja a compreensão da dimensão do crime e o que relaciona-se a isso, entre mercado de peças, o roubo em si, a necessidade por um transporte de qualidade, pois os ônibus não conseguem comportar os cidadãos em conforto, como exemplifica uma rápida cena. Vittorio De Sica mapeia magnificamente os entornos de um cenário de injustiças.

Ladrões de Bicicletas, assim como vários outros exemplos essenciais do movimento de outrora conhecido como neorrealismo italiano, aproximou-se o máximo que pôde de uma configuração ordinária dos perrengues rotineiros a pessoas em situações cotidianas enormemente complicadas. O pouco compartilhado por muitos, a vida como se manifestava aos menos abastados – isso era suficientemente importante para ganhar o interesse do artista e do seu público, recriando a visão do cinema europeu sobre si mesmo, suas potencialidades e suas responsabilidades. Como expor as desigualdades sociais mais que óbvias, mesmo que constantemente omitidas? Como ensinar, em uma comparação um pouco apenas distanciada da narrativa do filme, a andar de bicicleta uma pessoa que nunca teve oportunidade de ter uma? O personagem principal é um amaldiçoado, igualmente a outros milhares de italianos revestindo uma fotografia preto e branco sintomática, suja e integralmente preenchida, sem espaço para um enfrentamento verdadeiro e justo aos desafios aleatoriamente propostos pela vida. O vencer pelo mérito, diante do que acontece factualmente, dia após dia, e não do que aconteceria em um outro universo, com a utopia imaginária para quem nasceu em berço de ouro ou para quem foi agraciado com uma chance em um milhão, é uma farsa para crentes em sonhos de animações para crianças ou então mentirosos sem caráter, ponto final.

Quase que inerente, portanto, a gigantesca frustração de Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani), o protagonista de Ladrões de Bicicletas, ao término trágico desse verdadeiramente especial longa-metragem, com a conclusão de sua incessante busca pela bicicleta que fora roubada, meramente motivada pela manutenção do simples bem-estar de sua família, nada a mais que não o necessário. A resolução das abrangidas problemáticas não poderia ser outra, em vista que esse cinema não se basearia em sonhos e utopias para “gratuitamente” satisfazer os seus espectadores, senão a expressão de pesar contido por uma monstruosa força aparente do protagonista, consequentemente consolado pelo seu próprio filho, invertendo a ordem do relacionamento. A inconsolável  depressão em cena é capturada pela fotografia da obra, escurecendo-se e metamorfoseando-se de acordo com a progressão do desespero, que, por fim, encontra o seu ápice em uma das cenas mais brutais do cinema mundial. Como emociona sem um pingo de desonestidade! A marcante melodia central, prontamente surgindo no começo da fita, é crucial para a não contemplação do cenário, entretanto, a emocionante torcida por um ansioso sucesso que jamais será a conclusão esperada para uma jornada de infortúnios, mas o oposto completo desse pensamento. Uma reiteração do quão impotentes são os sonhos dos personagens.

A duração mais “curta” de Ladrões de Bicicletas – com muito menos que duas horas de projeção – reside sua justificativa na indisposição da obra a um cinema de meras complexidades superficiais, interessado, contudo, nas profundas simplicidades, como muito certeiramente exemplifica a narrativa em questão, carregada dramaticamente com competência, apesar da sua jornada quase episódica, entre objetivos e objetivos traçados, mas enfim fracassados – níveis de um videogame impossível. O longa, portanto, não possui pretensões de ser absurdamente cinematográfico como um continente do outro lado do oceano incentivava a arte a ser, ansioso, naquele caso, por estrelas reconhecidas, emoções obviamente manipuladas e grandiosas narrativas engrandecedoras. Já a inovadora concepção encontrada por aqui, em contrapartida às recorrências características da indústria artística mais popular, deu-se pela transposição aos espectadores de cinema, não mais um cinema qualquer, de um caráter entristecido sobre a realidade, porém pungente como a vida, não como o melodrama espetaculoso. Os atores são amadores, por exemplo. Ladrões de Bicicletas rejeita o espetáculo e encontra a empatia, o sentimento, a sociedade e o entendimento dos seus personagens, tudo partindo de dentro de uma simplicidade graciosa, sutil e honestamente chorosa, ordinária demais para, antes, ter sido cinema – acabou virando uma coisa ainda maior.

Ladrões de Bicicletas (Ladri Di Biciclette) – Itália, 1948
Direção: Vittorio De Sica
Roteiro: Cesare Zavattini, Oreste Biancoli, Suso d’Amico, Vittorio De Sica, Adolfo Franci, Geraldo Guerrieri (baseado em romance de Luigi Bartolini)
Elenco: Lamberto Maggiorani, Enzo Staiola, Lianella Carell, Gino Saltamerenda, Vittorio Antonucci, Giulio Chiari, Elena Altierri, Carlo Jachino
Duração: 93 min.

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