Acompanhar a história de uma grande personalidade, do seu nascimento à sua fase madura e morte, é algo muitíssimo interessante do ponto de vista dramático e narrativo. Ver a luta dos pais de um indivíduo, o nascimento e a educação dessa pessoa e, com o passar dos anos, notar o quanto ela se tornou alguém reprovável, dá ao leitor ou espectador uma percepção única de tudo o que está acontecendo, além de impressionar bastante no comparativo entre o que era esse indivíduo no passado e aquilo que ele se tornou. Em Superando Seu Adversário Feroz, a roteirista Kamala Chandrakant mostra a contenda entre Krishna e Jarasandha, filho de Brihadratha e poderoso rei de Magadha, que formou um grande império e fortaleceu e expandiu o início da dinastia fundada por seu pai.
A história narrada nesse quadrinho se caracteriza por uma série de eventos com vários personagens centrais e, a parte mais legal, uma série de batalhas e eventos fantasiosos que deixam tudo ainda melhor. Em relação ao principal antagonista, acompanhamos a sua história desde a concepção: seu pai estava triste porque não tinha filhos homens e, certo dia, vai visitar o sábio Chandakaushika, que dá um fruto para o rei e diz que se uma de suas esposas (as filhas gêmeas do rei de Kashi) comesse o fruto, ela lhe daria um filho. Brihadratha, com receio de deixar uma das mulheres tristes, divide o fruto e dá uma parte para cada. Ambas ficam grávidas, mas dão à luz apenas à metade de um corpo humano. Então elas resolvem deixar os meio-corpos das crianças numa floresta próxima ao palácio. Um espírito maligno feminino (rakshasa) chamado Jara, encontra as duas metades e acaba conseguindo juntá-las, formando uma criança viva. E assim se completa o nascimento de Jarasanda (cujo nome é uma homenagem a Jara, o demônio feminino que o juntou).
Partindo desse conto inicial temos todo o preparo para entender o protagonista, sua mania de grandeza e aquilo que ele realmente tem para amparar a impressão de “ser invencível” que cultivou ao longo da vida. Na segunda parte da aventura, quando as coisas se tornam mais complexas e muitos outros personagens aparecem, vemos Jarasanda entrar em guerra com diversos povos, reis e cidades, inicialmente querendo se vingar do assassinato de seu genro, o odiável rei Kamsa (evento que conhecemos em O Protetor do Dharma), mas depois simplesmente pelo prazer de conquistar e aumentar o seu poder e império. Nessa fase é que ele trava lutas diretas com Krishna e seu irmão Balarama, que possui um papel muito importante nas guerras aqui representadas.
A parte do enredo que mostra o rei Kalayavana dando auxílio a Jarasanda é outro ponto de destaque do texto. Assim como o amigo (que perdeu 17 batalhas para Krishna), Kalayavana é destemido e tem uma promessa divina de que seria invencível em batalha, mas a real interpretação desse tipo de promessa acaba escapando a esses homens, que acham que podem utilizar os favores dos deuses para o mal sem nunca ter algum tipo de revés. Aqui, vemos essa invencibilidade cair por terra, e Kalayavana tem um final inglório e patético que nos deixa comemorando imensamente e rindo pelo aspecto mórbido e inesperado que causa a sua morte (provando que Krishna tem um humor sombrio também, pois sabia o que iria acontecer). Nessa história também aparece a mítica cidade (ou reino) de Dwarka, que sempre deu o que falar em relação à sua existência ser real ou puramente imaginária.
Entre o final do ano 2000 e seguindo até o ano de 2004, equipes de pesquisas subaquáticas no golfo de Cambaia, Índia, encontraram vestígios de uma grande e misteriosa cidade submersa, que acredita-se ser a “cidade do Senhor Krishna“, ou seja, a grandiosa e mágica Dwarka, para onde a deidade levou o povo de uma cidade cercada durante a guerra contra Jarasanda. O conto final dessa saga, que mostra a derrota definitiva do vilão (que nem é pelas mãos de Krishna), é bem condizente com o que sabemos do personagem — como disse no começo da crítica, essa visão de sua vida desde o princípio nos dá uma excelente base de conhecimento para entender muita coisa –. Em comparação às épicas batalhas que vimos antes, é um bloco relativamente frustrante, mas em termos de variação de ação tem o seu ponto positivo, porque coloca os personagens lutando mano a mano, em um ringue, algo raro de se ver em ambientes mitológicos — pelos menos nas histórias ocidentais com as quais estamos acostumados, claro.
Uma pena que a arte de Pratap Mulick não aproveita as deixas visuais fornecidas por esse tipo de luta direta para gerar tensão e expectativa. Seu trabalho no restante da HQ, no entanto, é elogiável, com cenas de contexto muito bonitas e representação dos motivos de milagres ainda melhores. O trabalho de cores também merece destaque, por sua paleta cheia de amarelos que contrastam lindamente com o ambiente. Superando Seu Adversário Feroz reflete sobre os limites de uma promessa divina para alguém, sobre até onde é possível utilizar os benefícios de força e invencibilidade dados por um deus e sobre a diferença entre lutar para benefício e orgulho próprios e para o bem de um grande número de pessoas.
Krishna e Jarasanda: Superando Seu Adversário Feroz (Krishna and Jarasandha: Krishna outsmarts his fierce adversary) — Índia, 1977
Roteiro: Kamala Chandrakant
Arte: Pratap Mulick
Editoria: Anant Pai
34 páginas