É curioso observar como o sexo ainda é tabu dentro de alguns redutos que engendram as esferas sociais do nosso cotidiano. Falamos de violência e as redes sociais e telejornais diários expõe sangue, corpos, registros amadores de perseguições com tiros e outras representações viscerais de nossa existência. É um debate que parece natural e inevitável. Quando o assunto é sexo, no entanto, a temática é levada na brincadeira ou adentra o terreno das proibições, debates que precisam ser expressados em voz baixa, quase num sussurro, para não ruborizar as pessoas. Posso afirmar, por experiência docente, meu testemunho diante da explanação de pares acadêmicos e outras pessoas do reduto educacional na troca de vocábulos para evitar constrangimento próprio e também não deixa as suas plateias ouvintes desajeitadas. Orgasmo é modificado para “ao chegar lá” ou “clímax”, pênis é trocado por “órgão sexual masculino” e vagina “por órgão sexual feminino”. Tal como a jornada de Kinsey, desconfio que você, caro leitor, também deve conhecer experiências deste tipo. É a pura representação de uma sociedade hipócrita e repressora, devidamente transformada em narrativa no drama Kinsey – Vamos Falar Sobre Sexo, lançado em 2004.
Sob a direção de Bill Condon, também responsável pelo roteiro, acompanhamos a jornada de Alfred Kinsey (Liam Neeson), um homem com inquietação pulsante desde a juventude, sentimento que se expande ao passo que avança enquanto homem e pesquisador, mergulhado numa sociedade muito hostil com os temas voltados ao sexo além da procriação. Para Kinsey, como será possível conferir ao longo dos 118 minutos da narrativa, o sexo não era algo que precisava ser santificado pelo amor, tampouco proibido de ser parte de um diálogo entre a família num momento de reunião. Para o personagem, o sexo era algo que precisava ser contemplado pela lógica objetiva do método científico. Ele descobrirá isso numa experiencia pessoal e levantará a bandeira até os momentos finais de sua vida, gloriosa em diversos aspectos, apresentados mais adiante, no entanto, amarga também em seu desfecho, quando instituições e parceiros voltaram-se contra as suas temáticas, numa cortina esfumaçada por falsos pudores de pessoas poderosas e hipócritas, momentaneamente, mantenedoras da ordem e do poder.
A abstinência era pregada com horror. O sexo precisa ser visto como algo culposo, a ser castigado se consumado fora do casamento. Antes de adentramos no trecho hegemônico da vida do personagem, isto é, a fase adulta e polêmica, precisamos compreender alguns flashbacks importantes que delineiam as necessidades dramáticas de Kinsey, da sua infância ao período dos hormônios ferventes da adolescência, todas as etapas, trajadas pelos figurinos de Bruce Finlayson, adequados para cada época em questão. Virginia Katz, responsável por editar as idas e vindas de Kinsey em tantos momentos de suas memórias, é uma montadora que conecta os períodos cuidadosamente, sem deixar de fechar ideias de um acontecimento, devidamente entrelaçado com a proposta cronológica exposta para entrelaçamento. Conhecemos Kinsey como entomólogo, focado em sua pesquisa sobre insetos. Ele se debruça no tema e investe todo o seu tempo para as ciências biológicas, mas depois de lançar o seu trabalho, percebe a receptividade morna dos acadêmicos. Era um sinal avançar tematicamente dentro de sua área profissional.
Dentre as suas necessidades dramáticas, podemos apontar o desejo de Kinsey em fazer a diferença, se mais notável, apresentar uma pesquisa que fosse mais direta e com resultados mais imediatos. É quando entra a questão do sexo. Isso, no entanto, não é apressado, ao contrário, é debatido aos poucos, mas também sem marasmo. Há um calculado exercício dramático que impede o filme de se afobar nas emoções dos acontecimentos, algo que ganha pontos na dosagem da exposição dos fatos. É um crescente que culmina na saída de Kinsey da pesquisa sobre insetos e o seu trabalho inicial com sexo, indo na contramão do tema, debatido nas aulas de Higiene no curso universitário de área de saúde. A parte comportamental que envolve desejos, pulsões e outras abordagens ficava de fora e o personagem achou que era hora de agir. Foi algo que também veio do casamento com Claire (Laura Linney), virgens e despreparados, com dificuldades de se relacionar sexualmente na noite de núpcias. Será esse entrave que despertará no personagem a iniciativa no campo dos estudos sobre sexualidade, prazer, etc.
A sua cruzada científica encontra-se em paralelo ao interesse do público por palestras sobre educação sexual. Herman Wells (Oliver Platt), o gestor da universidade, encara a situação como desafio, algo que poderá chocar os padrões do professor Thurman Rice (Tim Curry), responsável pelo errôneo método de abordagem da sexualidade na instituição. As pessoas, desacostumadas, são expostas aos slides com penetrações, vaginas, pênis, dentre outras imagens que eram tratadas com excessivo pudor. Tratado de maneira embaraçosa anteriormente, o sexo ganha outra dimensão nas aulas e palestras do professor Kinsey. As turmas, inicialmente brandas e com poucos estudantes, começam a se tornar superlotadas, com inscrições para os interessados, tamanha a demanda. Ao conversar com seu novo público, em entrevistas preambulares, o professor fica perplexo com os conceitos sobre normalidade e desejo expostos pelos depoimentos. Masturbação como pecado e algo que causa infertilidade, as dúvidas sobre a existência de mais de uma posição sexual, etc. É o começo de uma era para todos os envolvidos, algo que teve o apoio da Fundação Rockfeller, gerida por Alan Gregg (Dylan Baker), aliado até o momento que Kinsey sofre perseguição política.
Em sua jornada na busca pelo desmonte de tabus sobre sexo e prazer, o professor monta a sua equipe de trabalho, apresentada desde a abertura da narrativa repleta de flashbacks e flashfowards: Paul Gebhard (Timothy Hutton), Wardell Pomeroy (Chris O’Donnell) e Clyde Martin (Peter Sarsgaard) são os três principais integrantes do grupo, dominantes na seara coadjuvante, em especial, Martin, personagem que adentrará sexualmente na vida de Kinsey como algo além da pesquisa teórica. Numa viagem para Chicago, tendo em vista a observação do comportamento homossexual num bar, eles primeiro partem para a observação. Depois de insistir, conseguem dialogar com um jovem que sofreu repressões no passado, quando os familiares descobriram suas peculiaridades mais intimas, algo que envolveu sessão de tortura e até a morte do outro jovem que se trocava carícias com o entrevistado. Na hospedagem, durante a noite anterior ao retorno, Kinsey e Clyde trocam olhares e fazem sexo, algo sem culpa ou pudor, numa resposta aos desejos, para não ficarmos apenas na ideia de que fizeram exclusivamente pela ciência. Ao chegar, Kinsey, muito prático, narra para a sua esposa a situação e ela, magoada, manifesta-se inicialmente um comportamento ciumento, no bojo do ideal de fidelidade, mas depois cede, principalmente quando o marido lhe diz que não se importaria se ela fizesse o mesmo.
Distante da ideia de santificar o sexo como algo exclusivamente matrimonial, o pesquisador deixa a entender que ela pode buscar outras experiências, pois o compromisso deles é emocional e vai além da relação sexual. É quando Claire e Clyde se relacionam. É assim que se torna mais amplo o grau de entrega dos envolvidos nesta pesquisa. Kinsey fez o que os manuais de metodologia da pesquisa científica ordenam em suas abordagens sobre o que é e como se faz uma pesquisa. Coletou dados, realizou entrevistas, estabeleceu padrões de análise, catalogou dados, traçou algumas conclusões e publicou o material para a comunidade científica ter acesso e dar o retorno, positivo ou negativo, favorável ou contrário, aos elementos de sua investigação que pode ter vacilado num breve momento e outro, mas revolucionou a palavra-chave “sexo e sociedade”. Nos desdobramentos dramáticos de Kinsey – Vamos Falar Sobre Sexo, o roteiro de Bill Condon acerta no desenvolvimento dos perfis de criaturas que estão mergulhadas no esquema científico, mas ainda assim, sentem e agem como seres humanos normais, intensos em alguns momentos, sacolejados por seus paradoxos e sensações que fogem da racionalidade científica da pesquisa na qual estão associados.
Bruce Kinsey (Luke Macfarlane) é quem estabelece uma relação narrativa de rima com o pai, pois ele representa uma metonímia da sociedade que via os experimentos da pesquisa de Kinsey como algo estranho, abjeto, fora do que deveria ser realmente feito. Isso fica bem saliente na cena de um jantar em família, quando as duas filhas de Kinsey falam sobre primeira vez, orgasmo, e o jovem, num tom moralista, questiona se eles não podem jantar sem ter que dialogar sobre prazer sexual e temas afins. O pai, anos depois de deixar o mundo da lógica moralista focada na sexualidade oprimida, demonstra-se indiferente aos questionamentos do rapaz e inclusive age num reflexo de sua criação, opondo-se as escolhas intelectuais do filho, numa demonstração do paradoxo que faz parte dos nossos comportamentos diante de interações cotidianas. Falamos e pregamos coisas, mas agimos como tal? A relação de Kinsey com o pai (John Lithgow), um homem que proibia o álcool, fumo e achava as danças de salão imorais, atravessa todo o filme e é revelada próximo ao desfecho, quando Kinsey resolve entrevista-lo para a sua pesquisa. É quando algumas descobertas explicam o comportamento do patriarca da família ao longo de tantas décadas, um homem que teve a sua sexualidade castigada desde muito jovem, algo que o transformou numa pessoa com severos transtornos diante do tema.
Kinsey achava que para compreender o seu processo, era preciso mergulhar nele. Salvaguardadas as devidas proporções, é uma alegoria de qualquer procedimento de pesquisa que requer observação para melhor análise. Como desenvolver uma tese sobre educação ou artes sem a experiência laboratorial de análise do produto artístico ou a observação dos tópicos teóricos de sua investigação numa situação real? O que Alfred Kinsey e seu grupo fez foi observar e analisar o sexo na prática. Para alguns soa como exagero, mas é totalmente compreensível quando o assunto requer algo além das entrevistas, um modelo legítimo para chegarmos em determinados pontos de interpretação em alguns processos, mas que não se compara ao testemunho registrado e contemplado para melhor desenvolvimento das ideias científicas. Kinsey não apenas ensaiou, mas olhou, filmou, catalogou e comparou comportamentos sexuais diversos, antes, durante e depois do ato, para melhor refletir sobre o tema que se especializou. Tudo isso num local organizado especificamente para isso.
Isso não significa que a sua pesquisa foi perfeita. Não é o caso, estamos falando de seres humanos e emoções envolvidas, mesmo que o pesquisador tenha tido bastante cautela neste quesito. A produção traz também temas polêmicos, desde a já mencionada dissociação das emoções pessoais em prol da objetividade científica e a questão da ética na pesquisa. Até que ponto podemos divulgar dados de um pedófilo, por exemplo, haja vista os códigos de conduta numa investigação com olhar científico. É possível julgar? Talvez. É correto julgar? Não sei. Como proceder? São questionamentos complexos que pedem frieza e olhar com distanciamento, pois a ficção, por sinal, nos ensinou que o sigilo médico/paciente, advogado/cliente, terapeuta/paciente, dentre outros, precisa seguir determinados ditames e respeitar o sigilo. Por esse motivo, Alfred Kinsey foi largamente perseguido ao longo de sua vida acadêmica, em especial, no desfecho de sua jornada, acusado de apoiador da pedofilia. Como bem observa uma personagem, “você publicou coisas sobre as suas filhas e avós se masturbando”, então, o que queria? Se isso era um choque para o público tomado por pudores, imagina o debate sobre orgasmo infantil, observado por estupradores que deram depoimentos e tiveram suas declarações arquivadas por causa da regra sobre sigilo e dissociação emotiva na pesquisa.
Esse, por sinal, é um tema tão acalorado no contemporâneo que na época de lançamento, o filme sofreu com a perseguição de pessoas que acreditavam ser uma narrativa sem pudores, algo a ser proibido para o bem da sociedade. Se alguém sentiu a hipocrisia pulsante, sim, ela estava lá, pois nunca hibernou e sempre tem acompanhado os avanços de nossas sociedades. Ademais, Kinsey – Vamos Falar Sobre Sexo é um filme com identidade visual amena, unificada em todas as suas etapas históricas. A direção de fotografia de Frederik Elmes e o design de produção de Richard Sherman investem em contrastes entre branco, bege e outros tons amadeirados, luminosidade que cintila os personagens e cenários de Andrew Baseman, artisticamente dirigido por Richard Lundy, focado nos detalhes que ajudam a construir os perfis dramáticos dos personagens esféricos deste drama que teve em sua condução musical, a trilha sonora de Carter Burwell, eficiente ao evitar muita intrusão, com o risco de tornar o filme melodramático demais. Inspirado na história do polêmico Kinsey da vida real, a narrativa de Bill Condon é tão ampla e aberta quanto as 521 perguntas do questionário de pesquisa do professor, documento que ia da infância ao momento das experiências sexuais do entrevistado, um percurso cheio de histórias imprecisas, emotivas, nebulosas, constrangedoras, traumáticas e muito intimas, interpretadas para se transformarem em discurso objetivo em prol do desenvolvimento científico.
Kinsey – Vamos Falar de Sexo (Kinsey) — Estados Unidos, 2004
Direção: Bill Condon
Roteiro: Bill Condon
Elenco: Alvin Keith, Chris O’Donnell, Fred DeReau, Gore Vidal, Jenna Gavigan, John Krasinski, John Lithgow, Laura Linney, Liam Neeson, Michael L. Bash, Oliver Platt, Tim Curry, Timothy Hutton
Duração: 116 min.