Qual é o significado de ser um general? É com essa questão em mente que Hara constrói o segundo arco de Kingdom, aventurando nosso protagonista rumo à sua primeira campanha. Logo de cara o autor mantém sua linha narrativa de continuamente modificar os caminhos tomados por nosso grupo principal, indo de fuga para exposição histórica, diplomacia para invasão, no primeiro arco, e, agora, temos guerra total. Na verdade, não há grupo principal – pelo menos não o que conhecemos –, já que, barrando breves aparições, sequer vemos Ei Sei, Shoubunkun e Karyo Ten. Todo o enfoque de A Campanha de Keiyou reside em Shin, e seu pequeno ajuntamento de sobreviventes sortudos, incluindo o intrigante Kyou Kai.
Hara segue usando o artifício de pôr Shin como meio de demonstração de mundo. Se antes sua ignorância da História e política da China foi utilizada para explicar o que acontecia no período, agora temos sua ingenuidade e excitamento em relação à batalha transpondo o (esperado) mesmos sentimentos do leitor. Existem duas concepções que Hara quer nos explicar. A primeira é a real selvageria da guerra. Se em A Rebelião de Sei Kyou somos apresentados a crueldade social da província de Qin, consequências do poder corrupto e de uma sociedade violenta, o autor decide no segundo arco evidenciar os conflitos de um dos períodos mais sangrentos da História mundial.
Obviamente que apenas quem vivenciou a guerra entende em primeira mão suas atrocidades, mas é praticamente conhecimento comum do público a barbárie das batalhas, como infinitas obras já adaptaram. Dito isso, é a partir daqui que Kingdom começa a estabelecer sua própria originalidade no retrato do combate das campanhas. Toda a truculência e inclemência do campo de batalha é visceralmente exposta através da detalhada arte que não economiza em pedaços de corpo lançados, sangue jorrando e expressões de terror. No entanto, existe uma certa suavidade no ar, reluzindo no semblante de entusiasmo de Shin. Afinal, quem não ama um herói que não fraqueja em face do inimigo? É dessa euforia entregue por Shin que o roteiro de Hara começa a trabalhar nos divergentes significados que a guerra tem para os soldados.
Ora, existem os combatentes que cedem à pressão, que vomitam e/ou fogem, como alguns da própria unidade de Shin; há soldados que lutam fervorosamente por recompensa ou por ser a única linha de profissão que são úteis; e também temos, como o personagem Heki, os guerreiros que batalham pela coroa e por seu reino. Mas existem aqueles que digladiam por que amam lutar. Shin encapsula esse conceito em toda sua aflição e carisma ao pelejar o inimigo. Ele não é um personagem cruel, e também há um senso de dever para com Ei Sei e Qin, mas Shin luta por algo mais, a busca pela glória. Hara nunca nega a malignidade da época, mas a atmosfera de satisfação entregue por Shin mantém o leitor em frenesi, torcendo para que sua lança atravesse cada oponente à frente.
Todo o terror e júbilo da campanha são muito bem expostos, mas o autor não contenta-se em unicamente mostrar a batalha. Hara quer clarificar a arte da guerra e elucidar a estrutura dos confrontos da época. As engrenagens do combate são minuciosamente explicadas, desde posições a estratégias, através de muito diálogo e detalhados desenhos. Nada é feito superficialmente, Hara toma seu tempo na compreensão não apenas do conceito da guerra, mas em como ela acontece. Da mesma forma que todos os capítulos diplomáticos e políticos constituem alguns dos melhores momentos da obra, as explicações do funcionamento da campanha nunca tornam-se enfadonhas, mas pelo contrário, se enquadram no ponto alto do arco.
É dentro desse objetivo de dissecar a guerra que Hara navega na segunda principal concepção do arco, a qual citei no começo do texto. O mangaká aprofunda-se no significado do que é ser um General, explicando o peso da posição militar tanto para Shin, quanto para o leitor. Ele faz isso de algumas formas bem interessantes. Inicialmente, vemos a perspectiva dos soldados de seus próprios generais. Seja lealdade, desconfiança, medo, ou qualquer outro sentimento do exército, a forma como as tropas enxergam o General influenciam enormemente na performance dos soldados. A moral, dada e retirada pelos generais, é a chave para vitória. A importância da posição almejada por Shin inicia-se na percepção dos homens sob comando. A diferente maneira como Heki e Baku interpretam o estilo do General Duke Hyou evidenciam a relevância da confiança em seu líder. Enquanto Heki, inicialmente, desconfia das decisões de Hyou, tomando as errôneas deliberações como comandante de mil homens, Baku confia cegamente em seu General, e vai além, entendendo completamente suas táticas e colocando-as em prática, colaborando para a vitória.
O modo de batalha de Duke Hyou abre discussão para outro entendimento da concepção do general. Sua abordagem instintiva tem um cunho extremamente violento, resultando na colossal contagem de corpos. O sacrifício em nome do triunfo, não havendo limites para o êxito. Seu oponente, o General Go Kei, de Wei, é audacioso, mas sustenta uma conduta estratégica, baseada em rigorosos planos. O caráter antagônico de ambos resultam na discussão do melhor procedimento para sucesso. Em um longo – e conveniente – despejo de informações de Ouki, outro General de Qin, Shin passa a entender a dimensão da sua jornada, assim como cria-se o debate para seu futuro estilo de comando. Considerando sua falta de discernimento tático, imagino que sua vertente será a instintiva, mas é controverso imaginar Shin como um comandante hediondo, que sacrifica seu exército em prol da conquista. Isso, na verdade, já é mostrado na forma que trata a pequena unidade que o segue, cheio de compaixão para os elos fracos.
Lendo A Rebelião de Sei Kyou, duas percepções que me ocorreram têm efeitos contrários neste segundo arco. Uma delas é a composição de Shin, que em sua personalidade aborrecedora e completa estupidez gera uma parcial falta de empatia com o protagonista, prejudicando a dinâmica dos outros personagens. Todavia, aqui, a assimilação de Shin é distinta dos capítulos anteriores, com seu carisma imergindo o leitor numa leitura obsessiva com seu êxito. Esse desenvolvimento de caráter não é provido de uma mudança de personalidade, mas da alteração de cenário, que entrega uma posição autoritária para Shin, situando todo o arco dentro do painel hostil que o protagonista brilha. Me pergunto se num vindouro quadro político ou uma saga mais pessoal ele seria tão carismático e divertido de acompanhar, mas já compreendo melhor a composição da pessoalidade do personagem dado o aspecto conflituoso constante do enredo. Entretanto, nem tudo é perfeito. O manuseio de gêneros que funciona de forma magnífica na retomada da coroa é recebido com estranhamento na guerra. A escolha da constante inserção humorística em eventos brutais quebra a imersão com episódios em ação. Momentos viscerais são abafados por piadas fora de ritmo, especialmente em relação ao irritante Bihei. Não é algo incessante, mas ainda é notável.
A Campanha de Keiyou nos apresenta a fenomenal primeira campanha de Kingdom, provavelmente de muitas que virão. A constante mudança de atmosfera é muito bem-vinda, especialmente pensando em como mangás caem na repetição de narrativas. Hara mantém o tom cômico tão característico do primeiro arco que, infelizmente, é mal montado durante a guerra, mas eleva a urgência enquanto toca em temas brutais, aumentando a construção de mundo para estados vizinhos, expondo a jornada de Shin mais detalhadamente e melhor posicionando o protagonista para uma leitura empática com seu propósito. O caminho para General é tortuoso e árduo, mas a tarefa hercúlea de Shin definitivamente é divertida e fantástica de acompanhar.
Kingdom – Vols. 5 a 7: A Campanha de Keiyou (キングダム, Kingudamu, Kingdom – Vols. 5-7: Keiyou Campaign Arc) – Japão, 2007
Contendo: Capítulos #48 a 73
Roteiro: Yasuhisa Hara
Arte: Yasuhisa Hara
Editora: Shueisha
Revista: Weekly Young Jump
495 páginas