Sei que o ideal na crítica é não estabelecer argumentos exclusivamente com base em comparações com outras obras. Contudo, em se tratando de Killers, segundo álbum de estúdio da Donzela de Ferro, é inevitável comentá-lo sem trazer equiparações diretas com seu antecessor, especialmente porque o disco é basicamente uma evolução técnica em todos os aspectos do autointitulado, ainda que musicalmente seja bem menos marcante. Parece um contrassenso o que digo, mas acredito que Iron Maiden firmaria sua identidade somente em The Number of the Beast, portanto, Killers seria quase como um segundo experimento da formação do estilo da banda, ainda rebelde, só que mais bem produzido. Por ser mais bem produzido (o primeiro de vários encabeçados pelo lendário produtor Martin Birch) e considerando a recepção calorosa do anterior, o álbum acabou puxado para o lado mais agressivo da banda e, consequentemente, ficou menos equilibrado na distribuição no tom das canções.
Se em Iron Maiden a pancadaria era mesclada com momentos de calmaria ou épicos com construções variadas de rapidez, Killers é do início ao fim agitado, embora possua diferentes e sofisticadas abordagens na velocidade constantemente rápida. Essa unidade veloz buscada é refletida na abordagem temática, que como o próprio título diz e várias das músicas indicam, contempla a morte, ou melhor, o ato de “matar”. Todas as músicas, direta ou indiretamente, tocam ou fazem menção a assassinos ou assassinatos, numa espécie de cobertura histórica da psicologia humana que enxerga prazer na matança. De certo modo, a agitação constante buscada no álbum pretende simular o efeito prazeroso do “matar”, discutido nas entrelinhas. Contudo, a maneira pela qual as faixas são organizadas, mais as suas narrativas particulares, forneceram uma leitura crítica ao próprio prazer sanguinário, evidenciando várias hipocrisias nas crenças humanas, especialmente a facilidade de usar a religião como perdão para qualquer atrocidade cometida.
A importância da sequência para atingir esse objetivo fica mais perceptível quando consideramos a divisão do disco. No “Lado A”, temos o passeio histórico: The Ides of March (título que faz menção ao assassinato de Julio Cesar); Murders in the Rue Morgue (adaptação sonora do conto homônimo de Edgar Allan Poe); Gengis Khan (título que faz menção ao imperador mongol conhecido por matar mais de 40 milhões de pessoas no Leste Europeu). No “Lado B” quatro faixas de um eu-lírico “comum” que guia as etapas da leitura crítica proposta pelo álbum: Killers (o assassinato), Prodigal Son (o perdão), Purgatory (o julgamento divino), Drifter (a redenção irônica). Fica visível através dessa estrutura o caráter mais elaborado de Killers, mas, curiosamente, esse fator de ser mais evidentemente organizado é o que o faz parecer um disco mais “cru” que o antecessor, tecnicamente inferior.
Peguemos o caso do excelente instrumental de abertura e a faixa seguinte Wrathchild. A transição entre as duas tem a intenção clara de trazer o final do solo da primeira para condicionar a entrada da seguinte. A execução, na prática, até funciona, quase não dá para perceber que uma faixa muda para a outra, no entanto, diferente do caso de Transylvania e Strange World no disco anterior, não temos a sensação de que as canções poderiam se juntar e montar um épico (até pela curta duração de cada), ou seja, a divisão bem planejada liricamente acaba trazendo uma desvantagem ao deixar muito claro a intenção para cada música. The Ides of March é a abertura instrumental de um show, enquanto Wrathchild uma canção puramente “hit de palco”, construída para todo mundo gritar “Wrathchild!”, no momento certo. Isoladamente para cada função são ótimas músicas, devidamente inspiradas (como boa parte do disco) nos solos de baixo – não à toa Steve Harris escreveu boa parte das músicas –, mas dentro da concepção do álbum, parecem conversar melhor espaçadamente.
Murders in the Rue Morgue é outra canção prejudicada ao vir na sequência e se encaixar na mesma lógica de funcionar melhor em isolado. O início cauteloso dá um princípio de pausa interessante ao álbum e um instigue necessário à canção, que busca essa atmosfera de terror/suspense pelo caráter adaptativo. No entanto, esses dois princípios são abandonados na desconstrução desenfreada do refrão, posteriormente, sobrecarregando o impacto da rebeldia vinda das duas anteriores, tornando a inquietação do disco cansativa para as próximas músicas, além de bagunçar a aura de mistério da música. Muita gente gosta bastante dela pelas precisas transições de ritmo internamente, mas particularmente não fica entre minhas favoritas da banda. Assim como Another Life e Gengis Khan, músicas com um forte apelo instrumental (inclusive a segunda é instrumental puro) numa equipe ainda sem a química que teria no futuro com a chegada do novato guitarrista Adrian Smith.
Desse “Lado A”, minha favorita acaba sendo Innocent Exile pela sensacional “metralhadora” no combo de baixo e bateria que a conduz instrumentalmente a forte ambiguidade da letra – seria o eu-lírico a vítima do cárcere por falsa acusação ou ele o verdadeiro assassino da sua esposa? –, além de ser junto a semi-balada Prodigal Son, as duas mais próximas do cadenciado no mar turbulento que é o disco. Inclusive, tê-las entre a autointitulada foi um mini respiro necessário para que ela pudesse brilhar. Talvez a única obra-prima entre todas do álbum, pela construção rítmica plenamente harmônica no tom crescente da intensidade da letra e performance inspiradíssima de Paul Di’Anno. Outra das pesadas que gosto muito é Purgatory, pela mescla da pegada explosiva quase thrash em tom melódico. Já Drifter meio que repete essa proposta sem o mesmo brilho, ainda que conte com um dos melhores solos de guitarra do álbum.
Killers é uma evolução que peca pelo excesso de violência e organização. É um bom “meio de caminho” para a verdadeira maturação do que seria Iron Maiden, mas como o rótulo sugere, ele nem é tão impactante agressivamente quanto o primeiro, nem tão conceitualmente sofisticado quanto o próximo. Foi sim um disco subestimado quando foi lançado, mas atualmente é um tanto superestimado num olhar holístico que tenta levá-lo ao hall dos grandes de Maiden. Exagero, mas é inegável que ainda é um grande disco e um aprendizado necessário.
OBS:. No remaster de 1998 do álbum, há uma faixa bônus denominada Twilight Zone, lançada como single em 1981 junto com Wrathchild. Desconsiderei ela para a análise, mas caso fosse considerada, estaria entre as melhores do disco.
Aumenta!: Wrathchild, Innocent Exile e Purgatory
Diminui!: Another Life
Minha Canção Favorita do álbum!: Killers
Killers
Artista: Iron Maiden
País: Reino Unido
Lançamento: 02 de fevereiro de 1981
Gravadora: EMI
Estilo: Heavy Metal