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Crítica | Kevin (2021)

por Michel Gutwilen
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Um corte com uma tesoura abre Kevin. Outro fecha. Ciclos. Duas ressignificações de uma perda que se transforma em uma nova vida, seja literalmente (como na planta) ou metaforicamente (como com o cabelo). O que há, portanto, entre esses cortes? Há Joana Oliveira buscando respostas. Seu documentário começa em solo brasileiro, onde a mise-en-scène parece se aproximar de uma certa tentativa de encenação, a partir de planos estáticos calculados e a sensação de um certo storytelling,  como se o filme precisasse criar a justificativa para impulsionar a viagem que ocupará boa parte da narrativa. 

Até aquele momento, sabemos apenas que a personagem parece deslocada da realidade a sua volta, que sua única fonte de felicidade é a voz estrangeira de Kevin no telefone e que seu pai está gravemente doente no hospital. Há uma sequência em que Joana conversa com Kevin por telefone, cujo plano inicial mostra ela sendo vista, de fora, na beira de sua janela (como uma torre de marfim), e depois, seguem-se planos da vida acontecendo na rua, de trabalhadores em sua rotina. O que exatamente isso significa? Uma ênfase imagética na sensação de deslocamento da protagonista? Uma tentativa de prenunciar que, mesmo em terras brasileiras, a personagem é também o “outro”, e não parte integrante daquela massa (o que acontecerá em Uganda)? O primeiro ato de Kevin não nos oferece muitas respostas e ele acaba com o título surgindo em tela tardiamente, na faixa dos dez minutos de projeção.

Curioso pensar que até o aparecimento tardio do título se insere dentro desse contexto de uma história que vai sendo confidenciada aos poucos para o público. Só é depois de um tempo com Kevin, em Uganda, que nos é contado o contexto em que ela e Joana se conheceram. Só é depois de muito tempo na narrativa que nos é dada uma informação crucial sobre a vida de Joana, que ressignifica todas as cenas anteriores vistas até então. Só é depois de um tempo que aparece a parte da família branca de Kevin. A ação e a imagem sempre antecedem à informação.

Não vou negar que se trata de uma jogada arriscada por parte do filme e suas intenções são um tanto quanto nebulosas. Por exemplo, no momento em que nos é dada aquela informação sobre o passado de Joana, inegavelmente seu impacto sensorial imediato é forte. Afinal, nosso cérebro passa a revisitar as cenas anteriores nas quais a protagonista estava com as filhas de Kevin, ganhando um peso que até então não possuíam. Porém, por qual motivo há esse jogo narrativo no qual se segura tal informação, quase como se buscasse o choque barato de um ‘plot twist’ de um filme ficcional? Por outro lado, essa retenção de dados, em outros momentos, pode ser curiosa e instigante, uma vez que permite com que o espectador vá se tateando pelas imagens e diálogos que estão acontecendo no presente. A força reside neles por si só e não por contextos prévios, sendo recompensador deduzir a força de uma amizade que existe há anos por meio de trocas de olhares e risos.

Para além dessas reflexões sobre escolhas estruturais da narrativa de Kevin, sua atuação temática se dá em diferentes frentes, o que é tanto um ponto forte quanto fraco, uma vez que há um atropelamento de assuntos. Inegavelmente, se trata de um filme sobre o que é ser mulher (mais especificamente: mãe), sobre os sonhos do passado versus a realidade do presente. Mesmo duas mulheres tão distintas, em todos os sentidos, compartilham das mesmas universalidades e dores que o “ser mulher” fornece. Só que há muito também sobre o olhar do “outro”. Não só no sentido de que é uma não-mãe observando o que é a vida de uma mãe, mas também um encontro de uma brasileira, branca, de classe-média, visitando sua amiga de Uganda, negra, e se deparando com uma cultura e realidade completamente diferente da sua. Assim como Joana estava alienada do povo naquela sua torre de marfim das cenas iniciais, ela igualmente está em Uganda.

A própria língua estrangeira que é falada majoritariamente não é a sua. Parece existir no longa sempre essa condição de estar sempre fora de sua zona de conforto, neste movimento de se colocar para fora de si, que move a sua protagonista a uma autodescoberta. Inclusive, isso talvez explique a insistência nos tiques ficcionais que Kevin leva, uma vez que ver sua vida documental através dessa camuflagem seja equivalente a experimentar o olhar do “outro” sobre si. Que Kevin — tanto o processo de fazer o filme quanto a pessoa — tenha ajudado Joana no conforto de suas dores e permitido que ela siga adiante.

Kevin — Brasil, 2021
Direção: Joana Oliveira
Roteiro: Joana Oliveira, Laura Barile
Elenco: Joana Oliveira, Kevin Adweko
Duração: 81 mins

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