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Crítica | Kaos – 1ª Temporada

Zeus deve estar louco.

por Ritter Fan
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Uma das mais relevantes fontes formadoras da cultura ocidental, a Mitologia Grega inspira obras dos mais variados gêneros há milênios sem mostrar qualquer sinal de cansaço. De base fundamental para os quadrinhos de super-heróis, passando por releituras de histórias clássicas como Pigmalião e Odisseia, respectivamente sob os enfoques de Galateia e Penélope, e chegando a uma infinidade de filmes e séries com as mais diferentes abordagens, os elementos dessa rica e variada fonte estão em todo lugar. Kaos é a mais recente obra a incorporar diretamente os elementos da Mitologia Grega, mas reimaginando-a e trazendo-a a tempo presente, em um mundo em que não só os deuses efetivamente existem, como eles são venerados por todos, com direito até a oferendas e sacrifícios.

A presença de Jeff Goldblum como Zeus em figurinos de extremo mau gosto (propositalmente, claro), uma direção de arte que faz do Monte Olimpo uma espécie de congregação de tudo o que é mais brega, incluindo flamingos rosas infláveis na piscina, a narração em tom debochado por parte de Stephen Dillane como Prometeu, sincronização de canções clássicas e modernas e uma pegada geral hiperbólica para os deuses talvez passem uma mensagem inicial de que a série é puramente cômica, enquanto que a verdade é bem diferente. Sim, sem dúvida há muito humor na criação de Charlie Covell (roteirista de The End of the F***ing World), mas o humor não só é ácido, como ele envereda muito rapidamente para o macabro, para o violento e para o odioso mesmo, em uma progressão muito interessante e bem construída que captura com bastante exatidão a personalidade dos seres mitológicos que povoam a narrativa.

Diria até mesmo que Kaos, devagar e sempre, não se furta em fazer o que poucas obras têm coragem de fazer, normalmente tabus não oficiais, mesmo que evitando ser explícita o tempo todo ou, pelo menos, nas sequências mais delicadas, como por exemplo uma cena em que Zeus quebra o pescoço de um recém-nascido. Em outras palavras, Covell cria um ambiente convidativo, mas essencialmente enganoso, que não demora a colocar suas mangas para fora e, não satisfeito com isso, vai em um crescendo de horrores que pode afastar quem espera algo mais leve. No entanto, para que fique bem claro, afirmo isso apenas como um aviso, não como um demérito. Aliás, muito ao contrário, gostei muito dessa abordagem corajosa, sem papas na língua, que lida com deuses como eles realmente aparecem na mitologia (e não só a grega): egoístas, mesquinhos, e vingativos que não só brigam entre si, como pisam em humanos como se fossem insetos ou os fazem de peões em um jogo sádico.

Passada em Creta nos dias de hoje (mas com locações na Espanha e Itália), a história gira em torno de uma profecia que, na interpretação paranoica de Zeus que começa quando ele percebe uma nova linha de expressão em sua testa, significa o fim de sua dinastia no poder: “Uma linhagem surge, a ordem declina, a família decai e o Kaos domina”. Mas o espectador aprende sobre ela por Prometeu, o deus que, por ter presenteado a humanidade com o fogo antes restrito aos olimpianos, foi castigado por Zeus que o acorrentou a uma rocha, com uma águia comendo seu fígado todos os dias, regenerando-se à noite. Esse deus em eterno suplício não só é o narrador, como guia do espectador pelos detalhes e personagens desse mundo teocrático que venera o panteão de deuses gregos e, também, efetivo personagem da série, primeiro como um “consultor” do próprio Zeus (que o considera seu melhor amigo apesar da punição) e, depois, como algo mais que não mencionarei aqui para não dar spoilers.

É Prometeu, portanto, que estabelece que três humanos completamente ignorantes do que estão fazendo e do que está prestes a acontecer com eles, terão papeis fundamentais na realização da referida profecia, com a série inicialmente apresentando o primeiro deles, Eurídice, ou apenas Riddy (Aurora Perrineau), esposa de Orfeu (Killian Scott), um cantor famoso completamente apaixonado por ela, que começa a notar que seu relacionamento já não era mais como antes, algo que é reiterado pelo momento em que ela esbarra na profetisa Cassandra (uma completamente irreconhecível Billie Piper) em um supermercado que afirma que ela deixará o marido naquele dia. Esse é, narrativamente, o pontapé inicial da temporada, mas a verdade é que, em sua estrutura, todos os três primeiros episódios servem de introdução alongada para todos os personagens relevantes, deuses ou humanos, assim como aos lugares em que a ação se desdobra, seja Creta presidida ditatorialmente por Minos (Stanley Townsend) com auxílio de sua filha Ariadne, ou Ari (Leila Farzad), o Monte Olimpo de Zeus, e, claro,  o Mundo Inferior comandado por Hades (David Thewlis) ao lado de sua rainha Perséfone (Rakie Ayola).

E são as reimaginações dos personagens e locais da Mitologia Grega que formam, em conjunto, o grande trunfo da série. Ver o Mundo Inferior como um grande e burocrático escritório com fotografia em preto e branco e a travessia do Rio Styx em uma balsa com os mortos ironicamente usando colete salva-vidas, Polifemo (Joe McGann) como um dono de bar com tapa-olho, as Fúrias (Cathy Tyson como Alecto, Donna Banya como Tisífone e Natalie Klamar como Megera) caracterizadas como motoqueiras no estilo Hell’s Angels e as Moiras (Suzy Eddie Izzard como Laquésis, Ché como Cloto e Sam Buttery como Átropos) caracterizadas como drag queens e/ou pessoas de gênero fluido já vale o preço do ingresso e justifica o investimento na série para além das óbvias atrações dos já citados Goldblum, fundindo o cômico com o sinistro e Dillane em uma atuação primorosa, que se somam a Janet McTeer e Cliff Curtis divertindo-se como Hera e Poseidon. Melhor ainda é notar como há todo um cuidado para que as supostas modificações, que parecem “modernosas” e existentes apenas para encaixar-se em demandas do entretenimento moderno como muitos por aí reclamam, não são, na verdade, transformações e sim um retorno efetivo à essência de personagens que muita gente só conhece a partir de animações da Disney e obras afins, ou seja, não conhece. Houve um efetivo cuidado em resgatar as histórias clássicas com apenas uma roupagem visual moderna, mas com a manutenção de personalidades, atitudes e características de cada um, mesmo que inventando, aqui e ali, alguns elementos novos para apimentar a narrativa.

Uma dessas invenções é a origem dos deuses, algo que não gostei pelo que ela é e pela forma como a explicação ocorre, de maneira extremamente resumida e simplista pela voz de Prometeu já em momento avançado da temporada para justificar eventos que acontecem no Mundo Inferior. Na verdade, eu talvez não tenha gostado da mudança em razão de sua explicação corrida, quase como se fosse um detalhe insignificante, pelo que minha opinião pode mudar em futura segunda temporada, se houver. Seja como for, esse não é o maior problema da série. Aliás, nem problema é de verdade, pois modificações em histórias estabelecidas estão no DNA de adaptações mesmo que muitos tenham AVCs quando notam algo diferente do que está exatamente no material fonte (e o material fonte da Mitologia Grega é tão variado e vasto que fica até difícil indicar qual é). A questão maior, para mim, é que, mesmo com apenas oito episódios, a história, depois que apresenta todas as situações e todos os personagens, algo que acontece lá pela metade do quarto episódio, perde fôlego e começa a andar com um passo mais lento que, na falta de novidades interpretativas da mitologia, acaba afetando o ritmo como um todo. As repetições passam a ser constantes, algumas rearrumações de relacionamentos ganham pouco destaque quando claramente deveriam ter mais tempo e eventos importantes e climáticos deixam de ter o impacto que deveriam.

A impressão que tenho é que ou Kaos foi pensada para ser uma minissérie com alguns episódios a mais que foi transformada em uma série de mais de uma temporada, o que costumeiramente costuma afetar a narrativa ou que a história reservada para esse primeiro ano foi acanhada demais para efetivamente ocupar o tempo alocado sem rodar em falso. Faltou uma organização mais cuidadosa de tempo para evitar, por exemplo, que o périplo de Orfeu atrás de Riddy parecesse pura enrolação, ou que, por outro lado, Ari só aparecesse quando estritamente necessário à história, algo que não condiz com a importância que é dada à personagem pelo próprio Prometeu. Essas questões afetaram o passo da temporada e tornaram sua segunda metade sensivelmente mais lenta, talvez até arrastada, do que a primeira, que se beneficia tremendamente das reimaginações mitológicas.

Kaos, mesmo assim, acaba sendo uma deliciosa diversão que, surpreendentemente, bebe generosamente de sua fonte, transforma-a de maneira consistente e imagina um mundo moderno submisso ao panteão de deuses perfeitamente crível e lógico. Não creio, porém, especialmente considerando o quanto a temporada inicial já pareceu esticada, que haja muito mais história para a série continuar por mais de uma, talvez, com boa vontade, duas temporadas, mas a criação de Charlie Covell com certeza é uma ótima, diferente e muito bem produzida pedida em meio à vasta oferta de séries que temos hoje em dia.

Kaos – 1ª Temporada (Idem – Reino Unido, 29 de agosto de 2024)
Criação e desenvolvimento: Charlie Covell
Direção: Georgi Banks Davies, Runyararo Mapfumo
Roteiro: Charlie Covell, Georgia Christou
Elenco: Jeff Goldblum, Janet McTeer, Aurora Perrineau, Cliff Curtis, David Thewlis, Rakie Ayola, Killian Scott, Leila Farzad, Nabhaan Rizwan, Debi Mazar, Stephen Dillane, Misia Butler, Mat Fraser, Stanley Townsend, Billie Piper, Suzy Eddie Izzard, Ché, Sam Buttery, Fady Elsayed, Tomi Egbowon-Ogunjobi, Gilian Cally, Shila Ommi, Amanda Douge, Daniel Lawrence Taylor, Ramon Tikaram, Joe McGann, Cathy Tyson, Donna Banya, Natalie Klamar
Duração: 397 min. (oito episódios)

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