Tendo navegado por todos os episódios piloto da Era Showa da franquia Kamen Rider, senti-me encorajado a mergulhar no mangá de Shotaro Ishinomori, criador do personagem e da mitologia e que foi publicado simultaneamente à série original, entre 1971 e 1972, hoje compilado, por aqui, em três volumes. O primeiro deles, objeto da presente crítica, conta com três grandes capítulos em que não só testemunhamos a transformação de Takeshi Hongo no famoso ciborgue gafanhoto que pilota uma moto turbinada pelas mãos da organização vilanesca Shocker, como o vemos enfrentar três inimigos inspirados em totens animais como é o protagonista, o que imediatamente me trouxe à mente o Homem-Aranha e seus inimigos clássicos também baseados no mundo animal.
Não coincidentemente, o primeiro inimigo que Hongo, como Kamen Rider, enfrenta, é justamente um ser aracnídeo chamado de Homem-Aranha, exatamente como na série. Aliás, a estrutura do mangá acompanha muito de perto o que vemos pelo menos no começo da série de TV original, algo que é ao mesmo tempo esperado e frustrante. Esperado porque, afinal de contas, temos que lembrar que Ishinomori estava comandando as duas obras ao mesmo tempo e uma, de certa forma, revitaliza a outra nos olhos do público, especialmente na época em uma era transmitida e a outra era publicada, fazendo grande sentido sob a ótica do marketing. Frustrante porque é, inevitavelmente, mais do mesmo, mas, curiosidade, com qualidades e defeitos diferentes entre si.
Na verdade minto. Quase diferentes entre si seria mais honesto, pois um aspecto o mangá se equivale à série, ou seja, na relativa pressa e confusão que é a origem do super-herói que, perseguido pela Shocker, acaba em um acidente e, ato contínuo, capturado para sua conversão, mas libertado logo antes de ter sua mente para sempre transformada em não mais do que um zumbi obediente à organização vilanesca. O mangaká escreve sem nenhuma preocupação com a criação de uma estrutura básica cadenciada ou na criação de alguma lógica interna firme e, literalmente em meia dúzia de páginas, o brilhante e atlético estudante de biologia e motoqueiro Hongo já aparece como o superpoderoso ciborgue com um inesquecível traje assemelhado ao gafanhoto. Há até um agravante narrativo aqui já que sequer vemos exatamente como Hongo se transforma no Kamen Rider e, da forma como a história avança, fica a impressão de que a própria Shocker está surpresa com a transformação.
Ultrapassado esse problema em comum, a comparação entre mangá e TV começa a tornar-se divergente. Uma das mais fascinantes características da série televisiva é o quanto Kamen Rider e seus inimigos são bizarros e macabros, com um uso até surpreendente de violência e sangue. Nos quadrinhos, o traço mais limpo de Ishinomori tira um pouco da bizarrice e do impacto da violência, ainda que o autor, ao revés, seja capaz de imprimir muita agilidade visual, com páginas duplas e splash pages muito atraentes para lidar com os embates de Kamen Rider com o Homem Aranha, Homem Morcego e Homem Cobra. Ao mesmo tempo, a violência e o “choque” estão presentes, só que de outra maneira, já que, sem as amarras naturais impostas pelo orçamento da TV, há espaço para um trabalho mais ousado e chamativo.
Vale especial destaque para a maneira como Ishinomori trabalha o Homem Morcego e suas vítimas transformadas em vampiros, já que consegue imprimir um pouco de atmosfera de filme de horror trash, com direito a ataques coordenados, voos pela cidade e até o uso de um antídoto criado por Hongo, que é o único momento em que seu brilhantismo em biologia é usado na história. E, de fato, a arte é o grande atrativo do mangá, já que o roteiro permanece estranho e claudicante de capítulo a capítulo, sem que o autor consiga fluidez nesse quesito. Por seu turno, quando encaramos o primeiro volume de Kamen Rider como uma obra quase que exclusivamente visual, relevando a história como um detalhe não muito significativo, ela melhora muito e mostra a que veio, com Ishinomori por vezes até se arriscando a “sujar” seus traços com rabiscos e deformações que amplificam a sensação de que o leitor está mesmo diante de algo diferenciado e no mínimo curioso.
Realmente um material “irmão” da série clássica, Kamen Rider: Volume 1 é o confuso, mas belo começo paralelo de uma criação fascinante que tem o poder de hipnotizar tanto o espectador quanto o leitor. O ciborgue gafanhoto e motoqueiro que é um efeito colateral do plano de dominação de uma entidade misteriosa e sinistra é como um ímã potente capaz de atrair por sua estranheza e ousadia, mas não tanto por sua coesão. Se eu pretendo ler os dois volumes seguintes? Ah, com certeza!
Kamen Rider: Volume 1 (仮面ライダー, Kamen Raidā – Japão, 1971)
Roteiro: Shotaro Ishinomori
Arte: Shotaro Ishinomori
Editora original: Kodansha
Data original de publicação: 1971
Editora no Brasil: NewPOP
Data de publicação no Brasil: 07 de junho de 2021
Editoria: Junior Fonseca
Tradução: Thiago Nojiri
Páginas: 272