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Crítica | Kalak (2024)

Um forasteiro em uma terra distante.

por Roberto Honorato
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Os primeiros minutos de Kalak me deixaram preocupado. Não só por conta de uma cena pesada e desconfortável, mas pelo que o filme parecia prometer. Tudo soava como mais uma jornada de personagens em busca de sua própria identidade depois de um passado traumático. Não que isso seja uma proposta ruim, porém ter que depender apenas dela tem sido uma muleta que alguns diretores vêm utilizando mais vezes do que consigo contar nas mãos. Felizmente, a diretora Isabella Eklöf, mais conhecida por escrever o longa Border (2018), brinca com a percepção do espectador criando um ambiente de elementos batidos que se encontram em filmes menos inspirados, mas logo quebra a ilusão com um diálogo consciente e quase metalinguístico sobre como narrativas de autodescoberta protagonizadas por homens brancos são geralmente construídas em cima da exploração de culturas alheias, muitas vezes de povos originários.

Tendo sido abusado sexualmente pelo próprio pai, Jan (Emil Johnsen) decide fugir das memórias do passado e levar sua família para morar na Groenlândia. Trabalhando como enfermeiro, Jan faz de tudo para ser bem aceito pelos moradores da capital, mas ele acredita que a melhor forma de fazer isso é se conectar com as mulheres intimamente, o que lhe dá o apelido de “kalak”, um “groenlandês sujo”. Ainda que sua mulher esteja ciente disso e todos pareçam se seduzir facilmente pelo forasteiro, Jan sabe que está apenas fugindo do passado, sem perceber as consequências de seus atos.

O texto de Kalak explora essa linha entre o trauma pessoal do protagonista e suas atitudes horríveis como péssimo marido e alguém que vê outras pessoas como conquistas sexuais. Jan aceita o apelido de mal gosto que recebe dos locais como uma medalha de honra e utiliza isso como uma desculpa para realizar seus atos inconsequentes. Esse tipo de abordagem no enredo é arriscado porque ao mesmo tempo evita desmerecer o passado da personagem, mas também questiona tantas outras narrativas sobre redenção, onde não há um verdadeiro debate sobre as pessoas que também se machucaram na jornada de superação do protagonista.

Essa abordagem é feita com muito cuidado, e há bastante controle do material por parte da diretora ao ponto de transformar a cadeia de eventos criada pela protagonista em algo parecido com uma comédia de erros, onde chegamos a ter alívios cômicos, porém há muito mais tragédia do que piadas. Graças ao bom elenco isso funciona bem, com Emil Johnsen interpretando o típico marido bunda mole que não tem atitude para conversar com a própria mulher, mas se vê como um conquistador (quase literalmente) a traindo com as moradoras locais, ao ponto de mencionar como um dos seus sonhos seria “criar um harém no paraíso”. Ele está em um papel insuportável, mas Johnsen consegue manter o foco na sua personagem através de uma interpretação voltada para um lado mais patético, que funciona muito bem (não sei o quanto disso é um elogio ou um ataque ao ator, não o conheço de outras obras). Asta Kamma August, que interpreta a esposa de Jan, é uma atriz que conheço por outros trabalhos, como A Hipnose, e aqui está ótima em uma atuação contida, mas que carrega uma insatisfação depois de ter mudado toda sua vida por alguém que não merece. 

Kalak funciona como uma sátira de jornadas de redenção sem consequências. Há ótimas atuações e uma direção de arte bem pensada com uma câmera que transita e contextualiza os ambientes através de música e figurino. Eu queria muito ter dado uma nota maior para esse, porém a execução da trama envolvendo o trauma passado da protagonista chega a ser abandonado por uma longa parte do filme e depois que retorna, já não parece mais importante. Entendo que exista uma necessidade do filme em explorar cada um desses núcleos dramáticos, mas o longa perde o fôlego quando decide retornar para algo que nunca pareceu tratar como essencial desde o princípio.

Kalak – Dinamarca, 2024
Direção: Isabella Eklöf
Roteiro: Isabella Eklöf, Sissel Dalsgaard Thomsen, Kim Leine
Elenco: Emil Johnsen, Asta Kamma August, Maka Abelsen, Leif Bosold, Soren Hellerup, Klemens Christensen, Nino Fencker
Duração: 120 min.

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